quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Carmen e outras histórias (1833-72) 
Prosper Merimée (1803-1870) - França            
Tradução: Mário Quintana           
Rio de Janeiro: Zahar, 2015, 532 páginas 


Dezoito contos, num total de 532 páginas, constituem a inteira obra ficcional de Prosper Merimée. E todos eles, sem uma única exceção, verdadeiras obras-primas. O autor enfrenta temas os mais diversos, conseguindo tornar alguns deles modelares no subgênero escolhido: o fantástico em “Visão de Carlos XI” e “A Vênus de Île”, o policial em “O quarto azul”, o terror em “Lokis”, o horror com fundo político em “Tamango”, o sonho em “Djumane”. Embora apresente predileção pelo exotismo – a Córsega de “Mateus Falcone” e “Palomba”, a vida cigana em “Carmen”*, a Lituânia de “Lokis”, a Itália de “Federigo” e “Il viccolo di Madama Lucrezia”, a Argélia de “Djumane”, a costa ocidental da África em “Tamango”, o campo de batalha na Grécia durante as guerras napoleônicas em “A tomada do reduto”  –, o autor trafega com a mesma competência pelas ruas de Paris (“O vaso etrusco”, “O duplo engano”, “Arsênia Guillot”) ou pela campanha francesa (“O padre Aubain”).  Merimée ainda é moderníssimo do ponto de vista formal, quando em “Arsênia Guillot” e “A partida de gamão” omite, de propósito, o final da história narrada. É dele, por fim, uma das melhores versões do mito de D. Juan, “As almas do purgatório”.


* O leitor poderá encontrar ecos da Carmen, de Merimée, na descrição que faz Machado de Assis (1836-1908) de sua Capitu, em “Dom Casmurro”, romance publicado 55 anos mais tarde: “”Sua pele muito se aproximava do tom de cobre. Seus olhos eram oblíquos, mas admiravelmente fendidos; seus lábios um pouco fortes, mas bem desenhados e entremostrando dentes mais brancos que amêndoas descascadas. Os cabelos, talvez um pouco espessos, eram negros, com reflexos azuis como a asa de um corvo, longos, luzidios”. (p. 399)



Avaliação: OBRA-PRIMA 

(Dezembro, 2015)


Entre aspas

“(...) aquele que, sem que o interroguem, nos dá parte do seu segredo, ordinariamente se ofende por não ficar sabendo o nosso. Imagina-se que devia haver reciprocidade na indiscrição” (p. 71)

“Um amante feliz é quase tão aborrecido como um apaixonado infeliz” (p. 73)

“(...) como todos os homens, era muito mais eloquente para pedir do que para agradecer” (p. 150)

“Um homem sem memória não merece que se pense nele” (p. 357)


PRIMEIRO PARÁGRAFO

O duplo engano: “Fazia cerca de seis anos que Julia de Chaverny estava casada, e mais ou menos cinco anos e meio que reconhecera não somente a impossibilidade de amar ao marido, mas ainda a dificuldade de lhe dedicar qualquer estima” (p. 105) 


segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A última névoa (1935) 
Maria Luisa Bombal (1910-1980) - Chile           
Tradução: Neide T. Maia González          
São Paulo: Difel, 1984, 108 páginas 



O livro é composto por cinco narrativas, três bons contos e dois textos híbridos menos interessantes ("Tranças" e "O secreto"). Os três contos, "A última névoa", "A árvore" e "As ilhas novas", comunicam-se, quase se complementam, sendo que o fantástico cotidiano que nos dois primeiros é clima, no último é essência. A protagonista de "A última névoa" é uma mulher de rígida formação católica, casada com um primo recém-viúvo, Daniel, com quem vive numa estância nos pampas. Em uma noite de insônia, caminhando pelas ruas de uma cidade, ela se depara com um homem a quem se entrega. Esse amante por acaso reaparece em diversos momentos de sua vida, embora tudo possa ser apenas sonhos de uma mulher infeliz. A mesma insatisfação persegue Brígida, em "A árvore", que aos 18 anos casa-se com um homem bem mais velho e se surpreende com a mediocridade de sua vida quando a seringueira que existia sob a janela é cortada, deixando entrar luz em seu quarto. Assim também Yolanda, personagem de "As ilhas novas", que renega todos os pretendentes, isolada numa fazenda nos pampas, onde da noite para o dia surgem e desaparecem ilhas em lagos de água salgada. A autora expõe, por meio de uma linguagem extremamente poética, a condição de opressão e repressão sexual da mulher.

Avaliação: BOM 

(Dezembro, 2015)


Entre aspas

"Esta morta, sobre a qual não me ocorreria inclinar-me para chamá-la porque nunca houvesse vivido, sugere-me de repente a palavra silêncio". (p. 6)

"(...) o quarto parecia agora imerso numa taça de ouro triste." (p. 60)


"Talvez a verdadeira felicidade esteja na convicção de que se perdeu irremediavelmente a felicidade. Então começamos a movimentar-nos pela vida sem esperanças nem medos, capazes de fruir por fim todos os pequenos prazeres, que são os mais perduráveis". (p. 60)


"(...) a casa treme, o espelho oscila levemente e uma camélia murcha se desprende pela corola e cai sobre o tapete com o ruído brando com que que cairia uma fruta madura". (p. 90)



sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A vida de Lazarilho de Tormes (1553?) 
Anônimo - Espanha           
Tradução: Stella Leonardos         
Rio de Janeiro: Alhambra, 1984, 96 páginas 


Esta narrativa, fôrma da qual deriva toda a literatura picaresca ocidental, contempla as fortunas e adversidades de Lázaro (Lazarilho), natural de Salamanca, "filho de Tomé González e Antona Pérez", nascido "dentro do rio Tormes" (p. 15). Órfão de pai aos oito anos, o protagonista é dado pela mãe a um cego e assim iniciam-se suas desditas. Sempre lutando para não morrer de fome, vai pouco a pouco se tornando mentiroso, ladrão e covarde, tendo como mestres o cego hipócrita de quem é guia; um clérigo avaro; um escudeiro que se passa por nobre mas que o usa para mendigar comida pelas ruas de Toledo, cidade onde se estabelece*; um frade "amicíssimo de negócios seculares e visitas" (p. 76); um vendedor de falsas bulas para resgatar prisioneiros das Cruzadas. Sua vida começa a mudar quando passa a trabalhar para um capelão, repartindo água pela cidade. Dono de "um gibão de fustão velho e um saio puído (...) e uma capa que havia sido frisada e uma espada antiga (...)" (p. 91), torna-se pregoeiro e casa-se com a criada de um arcipreste de quem, aliás, todos dizem ser amante, mas que é para ele "(...) a coisa que mais quero e amo mais que a mim" (p. 96). Uma visão ácida, mas bem humorada, da sociedade espanhola, particularmente da instituição da Igreja corrupta, cínica e amoral. 


* Quando criado do vendedor de bulas, Lazarilho de Tormes acompanha o amo até a Mancha (p. 86), onde 50 anos depois nasceria o maior personagem da história da literatura universal, Dom Quixote... Curioso, isso... 


Avaliação: BOM 

(Dezembro, 2015)


Entre aspas

"(...) diz Plínio que não há livro, por mau que seja, que não tenha algo de bom (...)" (p. 13)

"'Quantos deve haver no mundo que fogem de outros porque não se vêem a si mesmos?'" (p. 17)

"- Que vos parecem estes vilões, que só com dizer somos cristão-velhos, sem fazer obras de caridade, pensam ser salvos, sem nada pôr de sua fazenda?" (p. 86)


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Homens em guerra (1917) 
Andreas Latzko (1876-1943) - Hungria          
Tradução: Cláudia Abeling         
São Paulo: Carambaia, 2015, 158 páginas  



O autor, húngaro de nascimento, escreveu em alemão este conjunto de seis contos publicado ainda no decorrer da I Guerra Mundial - e proibido de circular no território de todos os países envolvidos no confronto. Libelo pacifista, exibe a carnificina sem sentido do conflito, tendo como espaço a frente de batalha do exército austro-húngaro nas fronteiras com a Itália e a Rússia. A loucura que acomete os soldados ("A partida", "O companheiro - um diário", "A morte de um herói"), a hipocrisia e o cinismo dos comandantes ("O vencedor"), a tragédia do retorno dos combatentes desfigurados ("A volta para casa"), o horror da batalha ("Batismo de fogo"). Nesta última narrativa, a melhor do livro, acompanhamos a chegada ao front da tropa de "pedreiros, mecânicos e camponeses" (p. 46) convertidos em soldados liderada pelo engenheiro Rudolf Marschner, agora capitão, e pelo tenente Erich Weixler. Do conflito entre a repugnância do primeiro e a euforia do segundo nasce uma profunda reflexão sobre a irracionalidade humana. O texto da tradução, em geral muito bem conduzido, escorrega em algumas poucas atualizações lamentáveis - que, por serem poucas, saltam aos olhos: "focada" (p. 21), "percevejos são um porre" (p. 23), "vapt-vupt" (p. 44), "factóide" (p. 117), "chamando o Hugo" (p. 145).
   

Avaliação: MUITO BOM 

(Dezembro, 2015)


Entre aspas

"Que loucura era ficar parado ali, numa espera idiota pela morte, perecendo em meio à sujeira e ao sangue, como um animal na terra nua, enquanto os outros estavam sentados, alegres, limpos, bem-vestidos, em salas iluminadas, ouvindo uma peça musical, dormindo em suas camas macias, sem medo, sem perigo." (p. 61)

"Um civil não conseguia compreender que um general só comanda de verdade na guerra e que, durante os tempos de paz, não passa de um tipo de professor severo de colarinho dourado; um figurante que, de tanta monotonia, berra até ficar rouco". (p. 94)

"Sou realmente eu o doente, porque não consigo expressar ou escrever essa palavra sem que o ódio mais visceral engrosse minha língua? Não são os outros os loucos que, com uma mistura de fervor religioso, nostalgia romântica e simpatia envergonhada, encaram como que hipnotizados essa máquina de produzir aleijados e cadáveres? (p. 106)