terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A escavação (1987
Andrei Platónov (1899-1951) - Rússia          
Tradução: António Pescada      
Lisboa: Antígona, 2011, 173 páginas




Concluído em 1930, esse livro só foi publicado 57 anos depois - 36 anos após a morte do Autor. É uma crítica desalentadora ao processo de construção da União Soviética, com seus desmandos, sua burocracia incompreensível, o clima de delações e oportunismos e as incertezas nascidas da pequena autoridade - como explica Páchkin, presidente do conselho sindical da região: "cada pessoa deve ter um pouco de poder" porque isso torna o sujeito "mais calmo e mais conveniente" (p. 39). Mas não se trata de um romance de denúncia nem de tese, nem mesmo de uma distopia, como querem os editores. É o olhar sensível que limita-se a descrever algumas situações - e que, para ser o mais realista possível, lança mão de elementos... fantásticos! A narrativa torna-se assim extremamente eficaz, não adquirindo nunca um tom satírico ou sarcástico, que em geral não me agrada, por ser arrogante, deixando-se conduzir pela ironia, que julga, mas não condena, que compreende, mas não concorda. Influenciado certamente por Franz Kafka (1883-1924), encontramos no livro cavalos com estrito sentido de coletividade, que dividem o feno "submetendo-se à disciplina de maneira organizada, sem o cuidado do homem" (p. 104); um urso proletário, Misha, que trabalha martelando "como um homem uma tira de ferro incandescente" (p. 126); kulaks, termo soviético pejorativo para designar proprietários de terra, que dormem em caixões (p. 130 e seguintes); uma jangada construída para levar os kulaks para o oceano, para sempre (p. 121); a menina Nástia, filha de uma burguesa, que não quis nascer "enquanto só viviam os burgueses", mas aguardou a chegada de Stálin para vir ao mundo (p. 69) e a própria escavação, que dá título ao livro, alicerce para a construção da "única casa proletária comum, em substituição da velha cidade onde ainda agora as pessoas viviam de modo individual e isolado" (p. 25). Neste mundo, onde a felicidade, “um conceito burguês”, só leva as pessoas “à vergonha” (p. 23), desenvolve-se o fanatismo, que leva a crer que a ciência soviética poderia até mesmo ressuscitar os mortos, como argumenta o mutilado Játchev: “O marxismo pode fazer tudo. Senão, porque Lênine continua inteiro em Moscovo? Espera pela ciência, quer ressuscitar" (p. 146). Voschev, um dos personagens principais do livro – o romance parodia o realismo socialista, onde não há lugar para protagonismos – e alterego do Autor, resume enfim o desalento de quem acreditou na eficácia da Revolução Russa: "tenho sempre a impressão de que lá longe existe qualquer coisa especial ou objeto magnífico irreal, e eu vivo na tristeza" (p. 99).



Avaliação: BOM   

(Dezembro, 2016)


Entre aspas

"(...)  a paixão da razão é a atracção pela morte (...)" (p. 153)



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