terça-feira, 7 de março de 2017

No caminho de Swann (1913)
Marcel Proust (1871-1922) - FRANÇA 
Tradução: Mário Quintana  
São Paulo: Abril Cultural, 1979, 247 páginas



Primeiro volume do monumental ciclo Em busca do tempo perdido, esta narrativa se divide em três partes quase autônomas, embora a última sirva como uma espécie de amálgama do enredo. O Autor consegue uma proeza: em um estilo originalíssimo, no qual importa muito mais as sugestões sensoriais que propriamente o andamento da história, constrói uma crônica da alta sociedade francesa, na qual o protagonista mostra-se a um só tempo fascinado e desencantado com o ambiente que frequenta e descreve. A primeira parte do livro, "Combray", é uma belíssima recriação da infância do narrador na aldeia onde a família passava férias, quando emerge sua adoração obsessiva pela mãe - "com que gosto eu não daria tudo isto para poder chorar toda a noite nos braços de mamãe!" (p. 110). Escrita na primeira pessoa, no momento em que "(...) a vida vai agora mais e mais emudecendo em redor de mim (...)" (p. 27), a evocação do passado nasce de uma sensação provocada pelo gosto de uma madalena - "(...) bolinhos pequenos (...) que parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago" (p. 31) -, oferecida pela mãe do protagonista, então adulto, e que ativa em sua memória a lembrança de um outra madalena, experimentada com sua tia-avó Léonce, em Combray. Lá, descobre sua vocação para a literatura - "Tens uma bela alma, de qualidade rara, uma natureza de artista, não a deixes em falta do que lhe é preciso", vaticina Legrandin, um engenheiro "(...) mais letrado que muitos literatos (...)" (p. 45), ele também escritor; forma sua ideia a respeito do sadismo, quando vê, de longe, a amiga da filha do velho professor de piano, Sr. Vinteuil, cuspir no retrato deste, recém-falecido, antes de manterem relação sexual (p. 97-100); e conhece Charles Swann. A patética paixão de Swann, de uma estirpe de financistas, pela cortesã Odette de Crécy ocupa toda a segunda parte do livro, "Um amor de Swann", na qual o narrador da primeira parte assume uma terceira pessoa onisciente. Swann, até conhecer Odette, era um "puro mundano", que "(...) não procurava achar bonitas as mulheres com quem passava o tempo, mas sim passar o tempo com as mulheres que primeiro achara bonitas", pertencessem elas à aristocracia, fossem elas costureirinhas moradoras de cortiços (p. 117). Entretanto, Swann deixa de frequentar os salões elegantes e os espetáculos refinados para ligar-se a Odette, uma mulher vulgar, que possuía "(...) mau gosto (...) em todas as coisas (...)" (p. 145), infiel, grosseira. No final do capítulo, após vexames, humilhações e desonra, conclui: "E dizer que estraguei anos inteiros de minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não era meu tipo!" (p. 222). O narrador conduz seu personagem pelos círculos fúteis da aristocracia - onde o que importa é "(...) ter um nome autêntico e antigo (...)" (p. 197) e profundamente anti-semita (v. p. 195) - e pelos recintos extravagantes da burguesia, no caso, a residência do Sr. e Sra. Verdurin, onde, com o poder do dinheiro, tentam em tudo imitar o comportamento e copiar os valores da aristocracia. Na terceira parte, "Nomes de terras: o nome", o narrador retoma a primeira pessoa e descreve uma passagem, na pré-adolescência, na qual se enamora de Gilberte, filha de Swann, repetindo, quase literalmente, o desconforto provocado pela paixão patética deste por Odette - "(...) como acontecia outrora com Swann quanto ao caráter estético de Odette (...)" (p. 238), confessa. E, afinal, revela que a Sra. Swann, mencionada na primeira parte do livro, e a qual sua família repelia, é... Odette, com quem Swann acabou por casar-se...
    

(Março, 2017)


Avaliação: MUITO BOM     


Curiosidades:


1) Um dos melhores poemas da língua portuguesa, intitulado "Este quarto", de autoria de Mário Quintana (1906-1994), tradutor do livro, certamente foi inspirado neste trecho, quando Legrandin fala com o narrador: "'Que o céu permaneça azul para você, meu jovem amigo; e mesmo na hora, que para mim vem chegando, em que o bosque é já sombrio e a noite cai depressa, você há de consolar-se, como eu faço, olhando para o lado do céu'. Tirou um cigarro do bolso e ficou a olhar longamente o horizonte." (p. 75) Eis o poema:

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto

como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,

tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:

um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...

2) Em outro trecho, ao contrário, é Proust que claramente se inspira em seu compatriota, Charles Baudelaire (1821-1867): "(...) chegando em casa, [Swann] sentiu necessidade dela [Odette de Crécy], como um homem que, ao ver passar uma mulher entrevista um momento na rua, sente que lhe entra na vida a imagem de uma beleza nova que dá maior valor à sua sensibilidade, sem que ao menos saiba se poderá algum dia rever aquela a quem já ama e da qual o nome ignora" (p. 125). Eis o poema de Baudelaire, "A uma passante", na tradução do poeta Ivan Junqueira (1934-2014):


A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz… e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?


Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!


3) Proust desenvolve uma verdadeira teoria do romance, à pág. 55: "(...) todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou o infortúnio de um personagem real só se produzem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; todo o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial na estrutura de nossas emoções, a simplificação que consistisse em suprimir pura e simplesmente os personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele percebemo-lo em grande parte por meio de nossos sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não pode levantar. Se lhe sucede uma desgraça, esta só nos pode comover numa pequena parte da noção total que temos dele, e ainda mais, só numa pequena parte da noção total que ele tem de si mesmo é que a sua própria desgraça o poderá comover. O achado do romancista consistiu na ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa alma pode assimilar. Desde esse momento, já não importa que as ações e emoções desses indivíduos de uma nova espécie nos apareçam como verdadeiras, visto que as fizemos nossas, que é em nós que elas se realizam e mantêm sob o seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas, o ritmo de nossa respiração e a intensidade de nosso olhar. E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, cada emoção é duplicada, e em que o seu livro nos vai agitar como um sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja lembrança vai durar mais tempo, eis que então ele desencadeia em nós, durante uma hora, todas as aventuras e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam reveladas, pois a lentidão com que se processam nos impedem de as perceber (...)".

4) Sobre o talento: "Somos muito lentos em reconhecer na fisionomia particular de um novo escritor o modelo que traz o nome de 'grande talento' em nosso museu das ideias gerais. Por isso mesmo que essa fisionomia é nova, não a achamos absolutamente parecida com o que chamamos de talento. Dizemos antes originalidade, encanto, delicadeza, força; e depois um dia descobrimos que tudo isso era justamente talento". (p. 63)





Entre aspas:



"Tentamos achar nas coisas, que por isso nos são preciosas, o reflexo que nossa alma projetou sobre elas, e desiludimo-nos ao verificar que as coisas parecem desprovidas, na natureza, do encanto que deviam, em nosso pensamento, à vizinhança de certas ideias; e muitas vezes convertemos todas as forças dessa alma em habilidade, em esplendor, para influir em seres que sentimos situados fora de nós e que jamais alcançaremos." (p. 56)

“(...) os impulsos de sensibilidade têm pouco domínio sobre a continuidade de nossos atos e a conduta de nossa vida, e (...) o respeito das obrigações morais, a fidelidade dos amigos, a execução de uma obra, a observância de um regime, têm fundamento muito mais seguro nos hábitos cegos do que nesses transportes momentâneos, ardentes e estéreis". (p. 60-61)

"Não há talvez uma pessoa, por maior que seja a sua virtude, que a complexidade das circunstâncias não posso levar um dia a viver na familiaridade do vício que mais formalmente condena (...)". (p. 91)

"(...) as terras que desejamos ocupam a cada momento muito mais espaço em nossa vida verdadeira do que a terra onde efetivamos nos achamos". (p. 227)

"(...) não se ama a ninguém mais quando se ama." (p. 232)



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