domingo, 23 de julho de 2017

A família Golovliov (1876)
Saltykov-Shchedrin (1826-1889) – RÚSSIA 
Lisboa: Relógio D'Água, 2010, 282 páginas
Tradução:  Manuel de Seabra    



Este magnífico (e trágico) romance descreve a história dos Golovliov, ricos proprietários de terra, vivendo a 700 quilômetros de Petersburgo, logo após a decretação do fim da servidão na Rússia, ou seja, 1861. O Autor erige dois dos mais execráveis personagens da literatura ocidental, a cruel Arina Petrovna, e seu filho, o hipócrita Porfírio Vladímiritch, conhecido, entre a própria família, como Iúduchka, "o pequeno Judas" (p. 25). Arina "dirigia autocraticamente" a vasta propriedade de Golovliovo, "com economia. quase com avareza" (p. 19), governando cerca de "quatro mil almas" (p. 48). Casada com o inútil Vladímir Mikháilitich, um bêbado, cuja atividade limitava-se "a agarrar-se às criadas bonitotas no corredor" (p. 20), Arina passou a vida a ampliar seus domínios, comendo mal, dormindo mal e ignorando os quatro filhos. Ánnuchka casou contra a vontade da mãe e, após ser abandonada pelo marido, morreu, deixando as gêmeas Anninka e Liubinka, de dois anos, aos cuidados da avó. Stepán, depois de perder sua casa em Moscou, dada pela mãe como herança, volta para Golovliovo e, humilhado, é obrigado a viver de restos. Passa, então, a beber e enlouquece, assim como seu pai. Com a morte destes, Porfírio assume Golovliovo, logo se desentende com a mãe e expulsa-a para Dubróvino, parte dos domínios da família, herdada pelo outro irmão, Pável. Este também irá se consumir na bebida, desprezado até mesmo pelos empregados. Porfírio, "litigioso, mentiroso" e pio (p. 115), assume também essa propriedade e passa a contar os dias para incorporar Pogarelka, onde a mãe vive com as gêmeas. Anninka e Liubinka tornam-se "atrizes de província" e abandonam suas terras. Nesse ínterim, Porfírio vê seus dois filhos morrerem - Volódenka se mata e Pétenka sucumbe no caminho para a Sibéria, para onde ia cumprir uma pena por roubo -, amasia-se com Ievpraxéiuchka, que engravida, e tem seu bebê enviado para a roda dos enjeitados em Moscou. Porfírio, que "amava a ideia de atormentar, arruinar, sugar as pessoas" (p. 232), passa os dias fechado em seu escritório em infindáveis contabilidades e inúmeras rezas, sob o lema: "Não sei de nada! Não proíbo nada, nem autorizo nada!" (p. 204). Após anos, Arina morre, uma das netas, Anninka, volta para Golovliovo, tuberculosa - a outra, Liubinka também se mata - e passa as noites a beber com o tio Porfírio, insultando-se mutuamente, até o dia em que ambos enlouquecem e morrem. Então, como um abutre, aparece a prima, filha de Varvara, irmã de Arina, para assumir tudo, e continuar a história de avareza e autodestruição dos Golovliov, pois, como afirma o narrador, "há famílias sobre as quais paira, como inevitavelmente, uma predestinação" (p. 268), no caso, a cobiça, o alcoolismo, a loucura. Estupenda narrativa sobre a usura, o egoísmo, a hipocrisia, o cinismo - enfim, uma crítica ferina, mordaz, devastadora sobre a classe dos proprietários russos, cuja vida de exploração da miséria, acumulação de dinheiro e ociosidade iria redundar nas revoltas políticas do começo do século XX. 

(Julho, 2017)


Avaliação:  OBRA-PRIMA 




Entre aspas:

"(...) todos os homens que não têm qualquer objectivo consciente na vida anseiam instintivamente pelo seu torrão natal". (pág. 131)

"Um homem tem de insensibilizar a vista, o ouvido, o gosto e o odor, tem de tornar-se totalmente insensível para que os miasmas da vulgaridade não o influenciem". (pág. 180)

"(...) quanto mais um homem estúpido é, mais obstinado se mostra em conseguir os seus fins". (pág. 254)


Observações:

 
1) É curioso que parece haver uma inversão na ordem de um dos trechos do livro. O Autor segue rigorosamente a cronologia, mas estranhamente narra no capítulo intitulado "A sobrinha" (pág. 149-190) fatos ocorridos antes do capítulo imediatamente anterior, "Toda a família" (pág. 107-148).

2) É interessante o parentesco entre Pável Vladímiritch Golovliov com Ilya Ilitch Oblomov, protagonista do romance "Oblomov" (1859), de outro russo, Ivan Gontcharóv (1812-1891).

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