domingo, 29 de outubro de 2017

Tartarin de Tarascon (1872)
Alphonse Daudet (1840-1897) - FRANÇA
Tradução: Marcos de Castro
 Rio de Janeiro: Record, 2007, 174 páginas


O "intrépido tarasconês" Tartarin tinha quarenta e cinco anos e nunca havia dormido fora de casa, mas alimentava-se da fama de valente e de possuir caráter. Misto de Sancho Pança e Dom Quixote convivendo no mesmo indivíduo, orgulhava-se de seu jardim, como nenhum outro da Europa, composto apenas por "plantas exóticas", como se ele estivesse em plena África central, e de seu salão "cheio de armas de todos os países do mundo" (p. 27-28). Sua "reputação" se devia às histórias que contava sobre o período em que esteve na China, como diretor de negócios da Casa Garcio-Camus, embora "já não estava bem certo, ele próprio, de ter ido a Xangai ou não" (p. 52). De concreto mesmo, somente suas caçadas nas colinas que envolvem a cidade, quando atirava... em bonés jogados para o alto... Um dia, no entanto, aparece um circo na cidade, cuja maior atração era um leão do Atlas... Um leão domesticado e simpático, mas que desperta, no ingênuo e falastrão Tartarin, o desejo de cruzar o mar para matar leões na Argélia. De tanto falar nisso, a cidade passa a acreditar na viagem de seu habitante mais célebre. E então, para manter seu renome, mesmo contra sua vontade Tartarin tem que deixar o sossego do lar e partir para a então colônia francesa na África. Lá, vive várias e engraçadas aventuras, em busca de um felino há muito extinto naquele lugar. Crédulo, com sua fantasiosa imaginação, é passado para trás por um autointitulado príncipe Gregory de Montenegro, que arruma-lhe uma amante mourisca - na verdade, uma prostituta conhecida em Argel - e depois organiza uma expedição pelas franjas do deserto, tudo para lhe tirar até o último centavo. Afinal, depois de se envolver em trapalhadas, acaba matando um leão, cego e domesticado, usado para recolher donativos para um mosteiro no deserto. De volta a Tarascon, no entanto, é recebido como herói, seu prestígio como matador de leões e aventureiro já havia se espalhado por toda a região, porque, afinal, " o homem do Sul não mente: ele se engana. (...) Sua mentira, para ele, não é uma mentira, é uma espécie de miragem" (p. 52). Romance que explora o humor involuntário do ridículo e pretensioso Tartarin, motivo de chacota de todos, mas orgulhoso o suficiente para não compreender o que ocorre à sua volta, tem passagens bastante racistas* - principalmente contra o negros -, ao mesmo tempo em que desfecha uma crítica contundente contra o colonialismo**. 




* Exemplo: "Dos negros que conduziam as bagagens, um foi tomado por atrozes cólicas por ter comido o esparadrapo da farmácia. Outro rolou encosta abaixo em estado de embriaguez mortal, pois tinha bebido o álcool canforado. O terceiro, o que levava o álbum de viagem, atraído pelo dourado dos fechos e convencido de que transportava os tesouros de Meca, fugiu rumo ao maciço vizinho de Zacar a toda velocidade" (pág. 148)

** "Durante esse mês, procurando leões impossíveis, o terrível Tartarin errou de acampamento em acampamento (...) através dessa espantosa e ridícula Argélia francesa, onde os perfumes do velho Oriente se apagam sob um forte odor de absinto e de caserna. (...) Curioso espetáculo para os olhos que souberem ver... Um povo selvagem e corrompido que a França civiliza enchendo-o de vícios... A autoridade feroz e sem controle de paxás fantásticos, que se assoam com toda a seriedade em suas faixas da legião de honra e com ou sem motivo torturam as pessoas (...) A justiça sem consciência de chefes árabes de grossos óculos (...) vendem suas sentenças (...) por um prato de lentilhas ou de cuscuz doce. Comandantes libertinos e bêbados (...) que se fartam de champanhe (...) e organizam comezainas com carneiros assados enquanto, diante de suas tendas, toda a tribo morre de fome e disputa com os cachorros os restos da comilança senhorial". (p. 153-154)


(Outubro, 2017)



Avaliação: BOM  



Curiosidade:

Vale a pena observar o quanto de Tartarin de Tarascon há no coronel Ponciano de Azeredo Furtado, protagonista do romance "O coronel e o lobisomem", do brasileiro José Cândido de Carvalho (1914-1989), publicado em 1964. 

Entre aspas:

"Ah, o grande parto da popularidade! É bom sentar-se diante dele, mas que sofrimento quando ele derrama!" (pág. 67)





sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O Exército de Cavalaria  (1926)
Isaac Bábel (1894-1940) - RÚSSIA
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
São Paulo: CosacNaify, 2015, 247 páginas


Este livro reúne 36 textos com temática comum, a guerra levada a cabo pelos soviéticos contra os poloneses, entre 1919 e 1921. Não são propriamente contos, mas uma espécie híbrida de crônicas ficcionais, nas quais cenas de extrema crueldade são descritas com uma linguagem encharcada de poesia, provocando-nos um interessantíssimo estranhamento. Aliado a isso, o narrador evoca personagens que surgem numa história como protagonistas e ressurgem em outras como coadjuvantes, criando assim uma teia de enredos e situações que dinamizam a coletânea, dando-lhe quase uma feição de romance. Destaque para o olhar do narrador para a vida miserável dos judeus da Ucrânia, onde decorre boa parte das narrativas, e para alguns textos específicos, como "Pan Apolek", "Guedáli", "Kónkin", "O comandante de esquadrão Trúnov" e "Os Ivans". Enfim, o que torna as narrativas grandiosas é a linguagem expressionista. Três exemplos: "Uma vegetação verde pespontava a terra com bordeados caprichosos" (p. 77); "A noite nos consolava das nossas tristezas, uma brisa leve nos envolvia como uma saia materna" (p. 119);  "A tarde alçou voo para o céu, como um bando de pássaros, e a escuridão cingiu-me com sua coroa úmida" (p. 185).

(Outubro, 2017)



Avaliação: BOM  


Curiosidade:

Aqui, repete-se o velho problema de os tradutores não verterem para o sistema métrico as medidas nas quais foram consignados os originais. Versta, medida russa que equivale a pouco mais de um quilômetro, é mantido como versta, o que ocasiona confusão e perda de clareza de várias passagens. Estranhamente, nos dois último contos, "Argamak" e "O beijo", os tradutores usam quilômetros - "Tivemos que percorrer de sessenta a oitenta quilômetros por dia" (p. 197); "Depois de uma marcha sem descanso, de cem quilômetros..." (p. 207) - e até mesmo léguas - "nem mesmo me ocorreu que estávamos a dez léguas de Budiátitchi" (p. 208)... Aliás, légua é a denominação para medir distâncias usada em Portugal e trazida para o Brasil, que tem as mais variadas conversões, podendo significar de 2 a 7 quilômetros... 




sábado, 21 de outubro de 2017

O Coronel Chabert (1832)
Honoré de Balzac (1799-1850) - FRANÇA  
Tradução: Eduardo Brandão    
São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2013, 83 páginas




O senhor Hyacinthe, dito Chabert, conde do Império, marechal de campo e grande oficial da Legião de Honra, é dado como morto na Batalha de Eylau, que colocou em confronto franceses e russos, em 1807. Embora enterrado vivo, consegue sobreviver, com cicatrizes horríveis, que o tornam quase irreconhecível. Impedido de voltar de imediato, devido às sequelas das feridas, envia cartas à mulher, sem obter respostas. Finalmente, quando consegue regressar a Paris, sete anos depois, descobre que sua mulher, Rose (Rosine) Chapotel, casou-se outra vez e agora é a Condessa de Ferraud, mãe de dois filhos do novo marido. Chabert procura um advogado, Derville, para tentar resgatar a esposa e a fortuna. Então, o Autor nos conduz pelos meandros do Direito e pelos labirintos da paixão humana. Chabert vive na miséria, na esperança de resgatar seu passado - Rosine vive no presente, disposta a não ceder um milímetro sequer da sua posição na sociedade. Afinal, entre os conselhos do advogado e as armadilhas sedutoras da mulher,  sucumbe às últimas. Ao descobrir, entretanto, as trapaças de Rosine para o ludibriar, resolve abrir mão de tudo - fortuna, títulos, esposa - em nome da dignidade. Em 1840, Derville se depara com o Coronel Chabert vivendo num asilo para mendigos e loucos, confirmando uma predição do militar, feita logo no início do livro: "estive enterrado sob os mortos, mas agora estou enterrado sob os vivos" (p. 29). 


(Outubro, 2017)



Avaliação: BOM  


Curiosidade:

Neste livro nos deparamos, à página 68, com a "teinte de mélancolie" (tinta de melancolia) que mais tarde Machado de Assis (1839-1908) iria usar em suas "Memórias póstumas de Brás Cubas" (1881), quando, justificando "algumas rabugens da obra", afirma: "escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". 




Entre aspas:

"Os sofrimentos morais, perto dos quais as dores físicas empalidecem, provocam no entanto menos piedade, porque ninguém os enxerga". (pág. 33)


sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A pele (1949)
Curzio Malaparte (1898-1957) - ITÁLIA  
Tradução: Alexandre O'Neil   
São Paulo: Abril, 1972, 369 páginas



Que este romance possui, do ponto de vista estritamente literário, méritos indiscutíveis, não há dúvida. Mas seus defeitos - que são muitos - competem, e ganham, das suas qualidades. O narrador, denominado Curzio Malaparte, mistura todo o tempo ficção e autobiografia, o que nos permite pensar que as ideias ali expostas são também as do Autor e não somente do narrador ficcional. E é então que nos deparamos como estragos irreparáveis: a homofobia* (v. capítulos IV, "As rosas de carne", e V, "Os filhos de Adão"); o racismo (cf. ao longo do livro com que superioridade refere-se aos brancos em detrimento de negros e árabes); a autocomplacência. A história se passa entre 1943 e 1944, época em que os aliados desembarcam na Itália para combater os nazistas. Curzio Malaparte, capitão de ligação entre os italianos antifascistas e o exército aliado, acompanha de perto o desenrolar da guerra. Cínico, é irritante seu pernosticismo, seja ao querer ostentar suas relações com a aristocracia italiana - demonstra verdadeiro fascínio por títulos, ascendências, objetos da nobreza -, seja ao querer exibir seus conhecimentos enciclopédicos de arte e literatura**. O narrador relata a história da II Guerra Mundial como se os italianos fossem vítimas e não figuras de proa do abominável nazifascismo que gerou o conflito. Chega a ser patética a sua admiração pelos norte-americanos, cordiais, generosos, sensíveis - os oficiais branco, claro. Agora, há cenas impressionantes - a venda de crianças para prostituição infantil (p. 134 e seguintes); a crucificação de judeus na Ucrânia ocupada pelos alemães (p. 175 e seguintes); a morte do cachorro Febo numa clínica de experiências veterinárias (p. 188 e seguintes); o homem que morre esmagado por um tanque de guerra (p. 323 e seguintes). E há cenas de extremo mau gosto como a sereia (um peixe antropomórfico, parecido com uma menina) servida durante uma refeição (p. 240 e seguintes); o relato (ainda que falso) de uma mão deglutida num almoço (p. 306 e seguintes); e o julgamento do protagonista por fetos monstruosos (p. 357 e seguintes). Denúncia radical da estupidez humana - mas por alguém que se coloca acima da estupidez humana... - , que pode ser resumida nesta frase: "a nossa verdadeira pátria é a nossa pele" (p.  325). 



* "(...) eu perguntava a mim mesmo, como estupor, como fora possível que, da minha geração, forte, corajosa, viril, de homens formados na guerra, na luta civil, na oposição individual à tirania dos ditadores e das massas, como fora possível que, de uma geração máscula, (...) tivesse podido nascer uma geração tão corrupta, cínica, efeminada, tão tranquila e docemente desesperada (...)". (pág. 113-114)  

** Mrs. Flat estava sentada na sala de um antigo, nobre palácio napolitano, de arquitetura solene e faustosa, pertencente a uma das mais ilustres famílias da nobreza de Nápoles e da Europa, pois os Duques de Toledo não ficavam atrás nem dos Colonna, nem dos Orsini, nem dos Polignac, nem dos Westminster, a não ser, em certas ocasiões, dos Duques d'Alba. E naquela mesa suntuosamente posta, no brilho dos cristais de Murano e das porcelanas de Capodimonte, sob o teto pintado por Luca Giordano, entre aquelas paredes cobertas pelas mais preciosas tapeçarias arábico-normandas da Sicília, destoava deliciosamente. Mrs. Flat era a imagem perfeita do que teria sido uma americana no século XV, educada em Florença, na corte de Lourenço, o Magnífico, ou em Ferrara, na corte de Estensi, ou em Urbino, na corte dos Della Rovere, e que tivesse como livre de chevet não o Blue Book, mas o Cortegiano de Mester Baldassare Castiglione".  (p. 230)


(Outubro, 2017)



Avaliação: NÃO GOSTEI 


Entre aspas:

"(...) Cristo exige dos homens a piedade, não a solidariedade. A solidariedade não é um sentimento cristão". (pág. 73)

"Finalmente recuperei a liberdade (...) Para mim era como se saísse de um quarto sem janelas para entrar noutro sem paredes". (p. 186)

"Os homens realmente decentes são os que não fazem profissão nem de heróis nem de covardes". (p. 213)

"(...) Estado totalitário (...) É um Estado em que tudo o que não é proibido é obrigatório". (p. 226)



sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O sol das independências (1970)
Ahmadou Kourouma (1927-2003) - COSTA DO MARFIM 
Tradução: Marisa Murray  
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, 170 páginas


Escrito em francês, este romance narra as agruras de Fama Doumbouya, da etnia malinké, príncipe de Horodougou, uma região situada na fronteira entre a Costa do Marfim e a Guiné (no livro, retratadas como Costa dos Ébanos e República Socialista do Nikinai). Fama vive há vinte anos na capital do país. Casado com Salimata, com quem não consegue ter filhos, mora no bairro negro, miserável e  desempregado, sempre evocando sua condição de nobre em um lugar e um tempo em que isso já não tem a menor importância. Dividido em três partes. na primeira acompanhamos Fama percorrendo as ruas sujas e caóticas da capital atrás de funerais que lhe proporcionam um meio de subsistência. Na segunda, acompanhamos os passos de Salimata vendendo papa doce e arroz cozido no setor comercial da cidade, e a busca, por meio da feitiçaria, da cura para sua infertilidade. Na terceira e última parte, após a morte de um primo, Fama vai até sua aldeia natal, Togobala, sem saber se assume ou não a condição de chefe do clã. Após cumprir seus deveres protocolares, ele abre mão de seu direito sucessório, volta à capital levando uma coesposa, Mariam, e acaba envolvendo-se em um complô contra o governo. Preso e torturado, quando libertado descobre que suas duas mulheres o abandonaram e, sem esperança, pensa em regressar, em definitivo, para as terras de seus ancestrais. A fronteira, no entanto, está fechada e, como ex-preso político, ele encontra-se impedido de deixar o país. Assim, ao invés de usar a ponte que separa a Costa dos Ébanos da República Socialista do Nikinai, ele tenta cruzar as águas do rio, sendo atacado e morto por um crocodilo. Crítica implacável contra os europeus, que dividiram aleatoriamente os territórios africanos em nome da colonização, mas também análise contundente da corrupção, ganância e indiferença da elite local que tomou o poder por meio de partidos únicos e interpretações totalitárias do socialismo. No fundo, o romance discute a impossibilidade de diálogo quando as diferenças culturais são ignoradas, por desconhecimento ou por interesses escusos. 


(Outubro, 2017)


Avaliação: BOM


Curiosidades:



1) Entre as páginas 28 e 40, o Autor descreve a impressionante excisão (remoção) do clitóris de Salimata, prática comum ainda hoje em certas regiões da África, seguida de um estupro pelo feiticeiro da tribo.
2) É interessante perceber como o islamismo descrito no livro é praticado de maneira bastante singular, mesclado com crenças animistas - algo muito similar ao que ocorre com o catolicismo no Brasil, apropriado pela umbanda e o candomblé: "O muçulmano escuta o Alcorão, o fetichista segue o Koma; mas (...) aos olhos de todo mundo, todo mundo se diz e respira muçulmano, sozinho cada um teme o feitiço". (p. 91)
3) O título do romance deveria ter sido traduzido como "Os sóis das independências" - mais coerente com seu conteúdo. Além disso, há inúmeros vocábulos totalmente desconhecidos que aparecem no texto sem qualquer referência, e que temos que adivinhar seu significado pelo contexto, como, entre outros, marabu, boubou, manes, toubab, harmatão, cafre...
4) Em alguns momentos, o realismo do Autor ao retratar costumes e hábitos africanos nos remete ao realismo mágico latino-americano. como por exemplo, os dois oráculos dos malinkés: a hiena "A Antiga" e a jiboia "Reverendo do Banhado" (p. 136 e seguintes).
 


Entre aspas:

"Todo poder ilegítimo traz, como a trovoada, o raio que queimará seu desgraçado fim". (pág. 84)

"(...) o escravo pertence ao seu dono; mas o o dono dos sonhos do escravo é o próprio escravo". (pág. 146)

"As pequenas conversas entre a pantera e a hiena honram a segunda mas rebaixam a primeira". (pág. 160)



segunda-feira, 2 de outubro de 2017

O Primo Basílio (1878)
Eça de Queirós (1845-1900) - PORTUGAL  
São Paulo: Abril Cultural, 1971, 321 páginas



Magnífico romance sobre o moralismo, a hipocrisia, o machismo e a frivolidade da sociedade burguesa e seus falsos valores. Jorge é funcionário público, engenheiro de minas, "o gênio manso", "robusto, de hábitos viris", "dentes admiráveis" e "ombros fortes" (p. 10). Luísa, com quem está casado há três anos, é "asseada, alegre como um passarinho", "um solzinho louro e meigo" (p. 11). Tudo corre bem na casa onde moram com duas empregadas, Joana*, a cozinheira, e Juliana, a engomadeira, até que, nas vésperas de Jorge viajar a trabalho para o Alentejo, Luísa recebe a notícia da chegada de Basílio, seu primo, que, tendo deixado Lisboa pobre, enriquecera com negócios de borracha no Brasil. Jorge parte e alguns dias depois Luísa recebe a visita de Basílio, por quem, na juventude, fora apaixonada. Pouco a pouco, Basílio retoma a confiança da prima até convencê-la de que, afinal, nunca deixou de pensar nela um segundo sequer por todos os anos que estiveram separados. A romântica Luísa, por "não ter nada que fazer, a curiosidade mórbida de ter um amante, mil vaidadezinhas inflamadas, um certo desejo físico" (p. 158) acredita nas palavras do inescrupuloso Basílio, que vê nela apenas mais uma conquista, já que, para ele, "o adultério aparecia assim um dever aristocrático" (p. 92).  Ele aluga uma casa num bairro distante, o Paraíso do casal, onde passam a se encontrar toda manhã. Jorge demora-se no Alentejo, enquanto Luísa envolve-se mais e mais com o primo, para escândalo dos vizinhos e principalmente de Juliana, a engomadeira, que, ressentida por sua posição social subalterna, busca encontrar provas do amor adulterino da patroa. Ela acaba por apropriar-se de três cartas e dois bilhetes trocados entre os amantes, e passa a chantagear Luísa. Desesperada, Luísa pensa em fugir com Basílio, que, assustado com a perspectiva, deixa Lisboa às pressas - ciente de que aquela aproximação com a prima fora apenas "a afirmação gloriosa de sua beleza e da irresistibilidade da sua sedução" (p. 114). Luísa então passa a viver o inferno nas mãos de Juliana. Jorge regressa e encontra a mulher mudada, à beira de um distúrbio nervoso, achacada pela empregada. Luísa, sem saber mais como lidar com Juliana, que age como a verdadeira dona da casa, pede ajuda a Sebastião, amigo fiel de Jorge, que tentando resolver o problema, provoca, sem querer, a morte da empregada, por um aneurisma cerebral. Sebastião resgata as cartas e bilhetes, que Luísa queima. Quando tudo parece resolvido, Jorge intercepta uma carta de Basílio para Luísa, recordando "as boas manhãs" passadas no Paraíso (p. 291). Jorge enlouquece de ódio e, depois que a mulher se recupera das emoções fortes vividas naqueles meses, exibe a carta para ela. Então, Luísa, destroçada pela culpa e pelo remorso, cai em prostração e morre, esgotada. O Autor consegue pintar quadros vivos com personagens convincentes, onde nenhuma página está a mais, nenhuma palavra sobra, nenhuma ação é desnecessária.  E é curioso como são encenados, em dois momentos vitais, possíveis desfechos para o livro. Logo às páginas 33 e 34, Ernestinho, o dramaturgo, ao revelar para os amigos o enredo da peça  que está escrevendo, diz estar em dúvida a respeito da decisão que deve tomar: o protagonista descobre que a mulher o trai - ele deve matá-la ou perdoá-la? Jorge defende, como veemência, que o marido deveria matá-la. Mais tarde, sendo Jorge já sabedor do adultério de Luísa, Ernestinho conta que, afinal, resolveu o drama que escreveu com o perdão do marido - no que Jorge, dizendo-se mudado, concorda com a solução dada (p. 299). Também se sobressaem os vários personagens secundários, além de Joana, Juliana, Ernestinho, o fiel amigo Sebastião, o Conselheiro Acácio com suas tiradas redundantes, o médico frustrado e interesseiro Julião, o dramaturgo Ernestinho, a frívola carola D. Felicidade, a infeliz e promíscua Leopoldina, e outros e tantos. Um retrato que poderia ter sido composto hoje, tal a sua atualidade.




* É curioso que o Autor denomina Joana a quatro personagens diferentes: Joana é a cozinheira do casal Jorge e Luísa; tia Joana é a governanta do amigo Sebastião (p. 83); Joaninha, a Freitas, é a amiga de colégio de Luísa, que morreu tísica (p. 116-17); Joana Silveira é outra amiga de Luísa, que fora para a França (p. 228).





(Outubro, 2017)



Avaliação: OBRA-PRIMA