domingo, 17 de dezembro de 2017

Histórias apócrifas (1945)
Kárel Capek (1890-1938) - TCHÉQUIA   
Tradução: Aleksandar Jovanovic  
 São Paulo: Editora 34, 2009, 175 páginas




Reunião de  29 contos publicados em jornais, entre 1920 e 1933, e em livro apenas postumamente. Na verdade, trata-se de fábulas "apócrifas", ou seja, histórias "recolhidas" pelo narrador em livros previamente conhecidos do público - na maioria dos casos, a Bíblia. Todos os textos compreendem mais ou menos o mesmo tamanho (quatro páginas, na média) e obedecem à mesma lógica: uma rápida contextualização e um desfecho diferente ou alternativo ao texto-base. Um exemplo: em "Marta e Maria", Marta conta a uma vizinha sobre a visita de Jesus à sua casa e o encantamento que ele provocou em sua irmã - passagem que não está nos livros santos. O Autor é um moralista - no que tem de positivo esse conceito - e todos os contos aspiram a provocar no leitor uma reflexão. Amargo, irônico e desencantado, o Autor discute a mesquinhez humana (seja a de um padeiro que se revolta contra Jesus por ele distribuir, por milagre, pães de graça aos que têm fome, em "Sobre os cinco pães"; seja a de um artista medíocre que posiciona-se por inveja a favor da destruição dos ícones, em "A iconoclastia"), a política ("Alexandre o grande", A crucificação"), a sabedoria ("Ágaton"), e, principalmente, a relatividade da noção de verdade ("Como nos bons e velhos tempos", "As legiões romanas", "Ofir",  "Romeu e Julieta", mas sobretudo o hilário e desconcertante "Sobre a decadência dos tempos", em que homens das cavernas discutem sobre a dissolução dos costumes...


(Dezembro, 2017)



Avaliação: BOM

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Dois contos introdutórios 
Honoré de Balzac (1799-1850) - FRANÇA  
Tradução: Ubiratan Machado 
 São Paulo: SESI-SP Editora, 2017, 78 páginas


Esta seleção reúne dois contos do Autor: "Uma paixão no deserto", de 1832, e "A Grande Seteira", finalizado em 1842. O primeiro conta um inacreditável acontecimento, a paixão de uma pantera selvagem por um soldado francês perdido no Saara durante as campanhas napoleônicas. Perfeito em sua confecção, consegue extrair erotismo de uma relação absolutamente improvável. (E aqui cabe um parênteses: certamente Guimarães Rosa (1908-1967) leu esse conto e nele se inspirou para escrever a sua própria versão, "Meu tio o Iauaretê", publicado postumamente em "Estas estórias", de 1969. O cenário é o sertão, o protagonista é um caçador e a coadjuvante é uma onça, mas trata-se do mesmo enredo, com, diga-se de passagem, resultado muito superior do texto do Autor brasileiro). Na outra história, "A Grande Seteira", nos deparamos com o médico Bianchon, personagem presente em inúmeros outros lugares da Comédia Humana. Bianchon narra para um grupo de pessoas reunidas na casa do duque de Rhétoré a terrível vingança do conde de Merret contra sua mulher, a condessa de Merret, quando flagra-a em adultério. São dois textos curtos, mas são dois textos de Balzac! 


(Dezembro, 2017)



Avaliação: MUITO BOM

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017


Memórias sentimentais de J. Miramar (1924)
Oswald de Andrade (1890-1954) - BRASIL  
 São Paulo: Globo, 2004, 186 páginas


O narrador deste romance trafega pela vida como se habitasse uma bolha fora do tempo e do espaço. Cronologicamente, o livro cobre o período que vai do final do século XIX ao final da década de 1920, correspondente à República Velha (no Brasil) e ao convulso momento pré e pós Guerra Mundial. No entanto, o narrador passa ao largo dos acontecimentos - embora eles estejam todos lá, desde o enriquecimento dos paulistas com a cafeicultura às viagens nababescas à Europa, desde o surgimento da indústria do cinema aos combates insanos da I Guerra Mundial, desde o aparecimento do automóvel ao nascimento do ideário fascista. Mas João Miramar, criado para usufruir do dinheiro fácil da aristocracia rural, mostra-se ao longo da narrativa um perfeito alienado - alienado das questões sócio-políticas brasileiras e internacionais, alienado da sua própria vida pessoal. Casado com uma prima riquíssima, Célia, Miramar praticamente abandona-a numa fazenda no interior de São Paulo para desfrutar das festas, das amantes, do elogio fácil. Não demonstra nenhuma afeição, nem com a morte da mulher, nem com a dissolução do seu patrimônio. João Miramar, quando já não mais "dono de casa com safras longínquas livros quadros criados e a senhora grávida" (p. 104), envereda pelo mundo das letras, escrevendo e publicando suas memórias - fragmentos de fatos e impressões,  cristalizados em magníficas frases-valises, como esta:  "E branca e nua dos pequenos seios em relevo às coxas cerradas sobre a floração fulva do sexo, permaneceu numa postura inocente de oferenda" (p. 120). Ou, como afirma o próprio memorialista, citando um primeiro leitor, este livro lembra Virgílio, "apenas um pouco mais nervoso no estilo". Um dos raros monumentos da literatura brasileira.



(Dezembro, 2017)



Avaliação: OBRA-PRIMA






terça-feira, 5 de dezembro de 2017

47 contos 
Isaac Bashevis Singer (1904-1991) - POLÔNIA 
Tradução: José Rubens Siqueira 
 São Paulo: Cia das Letras, 2004, 719 páginas





Esta antologia recolhe boa parte dos contos, escritos originalmente em iídiche, vertidos para o inglês, com supervisão do Autor. Em geral, as histórias envolvem judeus hassídicos vivendo em pequenas comunidades miseráveis da Polônia antes da II Guerra Mundial, ou espalhados pelo mundo, particularmente nos Estados Unidos (Nova York e Miami) após 1945. As narrativas são formalmente tradicionais - "causos" - e encontram-se mergulhadas num universo fantástico, principalmente as que se passam nas aldeias polonesas, mas não no fantástico onírico que caracteriza o realismo mágico latino-americano, mas no fantástico enraizado nas superstições, onde demônios, reencarnação, metempsicose, possessões diabólicas, esconjuros e feitiços são reais. Aliás, a presença do Mal travestido de Bem para enganar até mesmo o mais crente dos crentes é um dos temas recorrentes do livro - aparece em textos como "O cavalheiro da Cracóvia", "O invisível", "A destruição de Kreshev","O último demônio", "O violinista morto", "Tem alguma coisa lá", "Uma coroa de penas", entre outros. Temas recorrentes também são histórias de amor impossível - "O Spinoza da rua do Mercado", "Yentl, o menino da yeshiva", "A viagem astral" - e as experiências de um escritor iniciante - "Um amigo de Kafka", "Um dia em Coney Island", "Fuga da civilização", "Vanvild Kava". Eu destacaria pelo menos cinco obras-primas: "Breve sexta-feira", "A sessão espírita", "Avô e neto", "O manuscrito" e "O escritor de cartas". Imiscuem-se em todos os contos a solidão, o sexo, o sonho, os desencontros, a paranoia (impressionante em "A cafeteria"), os traumas advindos dos pogroms. Um exemplo perfeito de que literatura é transcendência - não importa sobre o quê está se falando, mas como se está falando. Escrevendo em iídiche (uma língua em extinção), tendo como cenário aldeias miseráveis habitadas por judeus hassídicos "mergulhados em fanatismo, superstição, trevas" (p. 553) e como tema usos e costumes específicos, o Autor consegue sondar o mais recôndito da alma do Ser Humano. 



(Dezembro, 2017)



Avaliação: MUITO BOM  



Curiosidade:

O Brasil aparece em três momentos no livro:
pág. 241: "Os refugiados com que se encontrava espalhavam toda sorte de boatos sobre vistos para aqueles que haviam ficado na Europa, pacotes de comida e medicamentos que lhes seriam mandados por diversos agentes, formas de trazer os parentes da Polônia via Honduras, Cuba, Brasil". ("A sessão espírita")
pág. 532: "Disse: 'Gosto de café doce, não amargo. No Rio de Janeiro bebem xícaras minúsculas de café amargo feito bile". ("Uma história de duas irmãs")
pág. 685: "Margit foi criada pela irmã do pai, que era amante de um brasileiro dono de uma plantação de café". ("Vizinhos")



Entre aspas:

"(...) a compaixão é uma forma de amor e, de fato, a sua maior expressão". (pág. 536)