domingo, 30 de dezembro de 2018

As últimas cartas de Jacopo Ortis (1815)
Ugo Foscolo (1778-1827ITÁLIA  
Tradução: Andréia Guerini e Karine Simoni    
Rio de Janeiro: Rocco, 239 páginas



Jacopo Ortis é um jovem aristocrata que, por conta de suas posições políticas - favoráveis à unificação da Itália - é obrigado a refugiar-se nas colinas Eugâneas, ao norte de Pádua, região do Vêneto. Lá, na solidão do exílio, conhece Teresa, filha de T***, um nobre arruinado, por quem se apaixona perdidamente. O livro, dividido em duas partes, é constituído por cartas enviadas a um amigo, Lorenzo, que as edita e eventualmente comenta. A primeira parte narra o encontro de Jacopo com Teresa e a impossibilidade de realização deste amor, já que ela está prometida a Odoardo. "Odoardo era rico e de uma família com cujo parentesco o senhor T*** se livraria das perseguições e armadilhas dos seus inimigos, que o acusavam de ter desejado a verdadeira liberdade de seu país, delito capital na Itália" (p. 122). A segunda parte, que acompanha a peregrinação de Jacopo por várias cidades da Itália, acrescenta, às inquietações provocadas pela paixão avassaladora de Jacopo por Teresa, as suas meditações a respeito da política e dos políticos. "Se não houvesse leis protetoras para quem, a fim de enriquecer com o suor e com o pranto dos próprios compatriotas, empurram-nos à necessidade e ao delito, as prisões e os carrascos seriam tão necessárias?" (p. 141). Ao final, diante do casamento de Teresa e da frustração com relação a seus projetos políticos, Jacopo se mata. Às vezes causa estranhamento a maneira violentamente arrebatadora como vive Jacopo, mas temos que lembrar que ele está vivenciando o auge do Romantismo...


 (Dezembro, 2018)



Avaliação: BOM

Curiosidade: 

Avelino Foscolo (1884-1944), escritor brasileiro, anarquista, autor de romances como A capital (1903) e Vulcões (1920), entre outros, descendia de Ugo Foscolo por parte de sua bisavó.


Entre aspas: 


"(...) o que mais poderíamos esperar senão indigência e desprezo ou, no máximo, uma breve e estéril compaixão, o único conforto que as nações civilizadas oferecem ao refugiado estrangeiro?" (pág. 16)

"Acredito que o desejo de saber e recontar a história dos tempos passados seja filho do nosso amor próprio, que gostaria de se iludir e prolongar a vida, unindo-nos aos homens e às coisas que não existem mais e fazendo-as, por assim dizer, nossas". (pág. 19)

"Os homens, não podendo adquirir sozinhos a própria estima e a dos outros, esforçam-se para se elevarem, comparando os defeitos que, por ventura, não têm aos que seu vizinho possui". (pág. 37)

"Sepulturas! Belos mármores e pomposos epitáfios; mas ao abri-los, só encontramos vermes e fedor". (pág. 47)

"(...) onde a religião não está enraizada nas leis e nos costumes de um povo, a administração do culto é comércio". (pág. 62)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Casa de pensão (1884)
Aluísio Azevedo (1857-1913- BRASIL 
Rio de Janeiro: Editora Três, 1973, 328 páginas




Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, filho do comendador Manuel Pedro de Vasconcelos, "um dos mais estimados negociantes" (p. 285) de São Luís do Maranhão, chega ao Rio de Janeiro com vinte anos para estudar medicina. "(...) seu tipo franzino, meio imberbe, meio ingênuo (...) de uma vivacidade quase infantil (...)" escondia, segundo o narrador, "(...) um sonhador, um sensual, um louco. (...) Seu todo acanhado, fraco e modesto, não deixava transparecer a brutalidade daquele temperamento cálido e desensofrido" (p. 38). Amâncio, endinheirado, muito mais que se formar, pensa em desfrutar daquela cidade, que imaginava com "cortesãs cínicas e formosas, ceias pela madrugada, passeios pelo Jardim Botânico, em carros descobertos, o champanha ao lado, o cocheiro bêbado" (p. 53). Embora se veja como um sujeito esperto, é rapidamente engolfado pelo "bulício vertiginoso" do Rio de Janeiro. Muda-se para a casa de pensão de Madame Brizard, uma francesa casada, em segundas núpcias, com João Coqueiro, estudante de engenharia muito mais novo que ela. Madame Brizard tem três filhos do primeiro casamento: a mais velha, "a glória da família" (p. 92), unira-se a um ministro plenipotenciário; Léonie (Nini), "viúva histérica" (p. 97), e Cesar, então com doze anos. Na casa de  pensão, no centro, além de Madame Brizard, João Coqueiro, Nini, Cesar e os hóspedes, vive Amélia, irmã de Coqueiro, a Amélia dos camarões, como era conhecida à boca pequena. Coqueiro logo vê em Amâncio uma fonte de renda e passa a explorá-lo, convencendo a irmã a se deixar seduzir e tornar-se amante do estudante. Ao mesmo tempo, Amâncio tenta conquistar Hortênsia, mulher de Luís Campos, seu protetor. Com o tempo, Amâncio e Amélia, em uma outra casa, em Santa Teresa, onde o estudante se recolhera, junto com toda a família, para tratar de dores reumáticas, advindas após pegar bexiga, levam vida de casados - sob a vista grossa de Madame Brizard e Coqueirinho. Tornam a mudar, agora para Laranjeiras, mas já então Amâncio não sente mais por Amélia a paixão de antes... E começa a traçar um plano para abandoná-la... Mas Coqueirinho descobre, denuncia-o à polícia e Amâncio é levado a julgamento pela pretensa defloração de Amélia... Afinal, é julgado e absolvido, mas Coqueirinho, falido, inconformado e motivo de chacota, mata-o com vários tiros de revólver. O livro é às vezes prejudicado por um certo fatalismo, típico da época, e por imagens de extremo mau gosto - "As palavras borboleteavam-lhe da língua como o sangue de uma facada" (p. 150) ou "(...) aquela voz derramada pelos cantos da boca, que nem um caldo fino e seboso" (p. 153). Ou ainda por frases quase incompreensíveis pelo uso de termos técnicos - "Apesar de seus fracos estudos de medicina, fazia-lhe mal aos nervos aquela figura descarnada, que se exinania na impudência aterradora da morte: faziam-lhe mal aqueles membros despojados de vida, aquele esqueleto animado, que, na sua distanásia, parecia convidá-lo para um passeio ao cemitério" - uma frase que mais parece extraída de um poema de Augusto dos Anjos (1884-1914). E a cena final é um convite ao melodrama... Apesar de tudo, é um romance interessante para compreender a sociedade do Rio de Janeiro (e do Brasil) naquele fim de século XIX...


Avaliação: BOM


 (Dezembro, 2018)



sábado, 15 de dezembro de 2018

Mary Barton (1848)
Elizabeth Gaskell (1810-1865INGLATERRA 
Tradução:  Julia Romeu    
Rio de Janeiro: Record, 2017, 462 páginas




Um dos primeiros - e, ainda hoje, dos poucos - romances a tratar com realismo a vida do proletariado. A Autora situa sua história em Manchester, no começo da década de 1840, cidade que abrigava uma forte indústria têxtil, num momento em que não havia nenhuma legislação trabalhista e, portanto, a exploração da mão de obra beirava à escravidão. O livro, na verdade, divide-se, quase esquizofrenicamente, em duas partes: a primeira, quando a narradora apresenta a vida de privações dos operários (fome, doenças, mortes, insalubridade) e o desespero da busca pela sobrevivência; a segunda, quando concentra-se no assassinato do filho de um dos empregadores, Mr. Carson, aparentemente provocado por uma crise de ciúmes do pretendente rejeitado da protagonista, que dá título ao romance. Mary Barton é uma jovem que aos dez anos perdeu a mãe e desde então mora com o pai, John Barton, um operário que, revoltado contra o que considera injusto - o paradoxo entre a vida de conforto dos patrões, enquanto os empregados morrem na indigência -, une-se a sindicalistas radicais, tornando-se "um cartista, um comunista, tudo aquilo que chamam de louco e de visionário" (p. 201). Viciado em ópio, Barton, aguda consciência operária - "(...) o trabalho é o nosso capital..." (p. 81), afirma - ajuda na organização de greves, promove a divulgação das ideias paredistas e participa até mesmo na trama de atentados contra os donos das indústrias. Na primeira parte, a situação de extrema pobreza da classe operária é retratada com profunda indignação pela narradora: "(...) quando ouço falar, como já ouvi, dos sofrimentos e das privações dos pobres: (...) dos pais que passavam a noite inteira, sete noites por semana, sentados diante do fogo com suas roupas de rua, de modo que a única cama e os únicos lençóis da família pudessem ser reservados para o uso de seus muitos filhos; de outros que dormiam na laje fria por semanas a fio, sem meios adequados de se suprir de comida e combustível (e isso no mais profundo inverno); de outros, sendo obrigados a jejuar por dias e dias, sem a esperança de tempos melhores para alegrá-los, vivendo, ou melhor, morrendo, num sótão apinhado ou num porão úmido, ou sendo gradualmente aniquilados pela penúria e pelo desespero que os levaria à morte prematura (...) - será que posso me espantar ao saber que muitos deles, em tal época de miséria e infelicidade, tenham falado e agido com precipitação feroz?" (p. 103). Na segunda parte, o romance torna-se quase um trílher de julgamento: acusado pelo assassinato de Henry Carson, James (Jem) Wilson é preso e levado ao tribunal, cuja sentença será a pena por enforcamento. Mas Mary, apaixonada por ele - e sabendo de sua inocência - consegue, após várias peripécias, obter o testemunho de William (Will) Wilson, que garante um álibi insofismável a Jem (eles estavam juntos na noite do assassinato, longe do cenário do crime). Mais à frente, John Barton confessa ser ele o criminoso - um assassinato político - e é perdoado por Mr. Carson, já que, conclui a narradora, "ricos e pobres, patrões e empregados, eram, portanto, irmãos em sofrimento" (p. 428). John Barton morre, Mr. Carson torna-se um patrão mais justo - "(...) quem tem qualquer força dada por Deus deve ajudar os mais fracos (...)" p. 451 -, Jem e Mary Barton se casam e se mudam para o Canadá, onde ele vai ser "fabricante de instrumentos da Faculdade de Agricultura" em Toronto. Se na primeira parte, o discurso da narradora beira à subversão, na descrição das péssimas condições de vida dos operários - nos tempos de recessão, "as carruagens ainda atravessam as ruas, os concertos ainda ficam lotados, as lojas de artigos de luxo ainda têm clientes todos os dias, enquanto o operário passa os dias sem ofício observando essas coisas e pensando na esposa pálida que está em casa, sem reclamar, e nas crianças que choram, pedindo em vão por mais comida - na saúde que se esvai, na vida daqueles que mais ama se acabando" (p. 33); na segunda parte, ela ameniza as contradições e  busca uma conciliação entre patrões e empregados via discurso religioso - os críticos da época afirmam que essa guinada se deu em função das pressões dos editores...


Avaliação: MUITO BOM



Curiosidade: 

A Autora - estamos no início da história do romance, ou seja, no período de sua consolidação - usa de um subterfúgio muito interessante (e simpático) para dar maior verossimilhança à narrativa: a ignorância. Em várias passagens do livro, a narradora confessa não saber determinadas coisas. Por exemplo, à pág. 286: "Mary tateou mais e encontrou algumas balas ou projéteis (não sei como se chamam) naquele mesmo bolso"... Ou, à pág. 316: "Mas pense em Mary e no que ela estava suportando! Imagine (pois eu não saberia descrever) os exércitos de pensamento que se chocavam em seu cérebro". Ou ainda, à pág. 340: "Charley explicou o que queria usando muitas gírias que foram incompreensíveis para Mary e que eu, uma grande fã de terra firme, não saberia repetir corretamente". Em outras passagens, ela se imiscui como Autora, como por exemplo, à pág. 299: "Muitas pessoas têm pânico desses pergaminhos. Eu sou uma delas. Mary era outra". Ou à pág. 313: "E se em seus sonhos (aquela terra onde a piedade e o amor de outra pessoa não podem penetrar, nem para compartilhar da felicidade, nem da angústia; aquela terra cujas cenas são horrores invisíveis, mistérios ocultos e tesouros inestimáveis reservados só para nós; aquela terra onde, sozinha, eu posso ver, enquanto permaneço neste mundo, o lindo rostinho do meu filho querido)". Ou ainda, à pág. 381: "Eu não estava presente, mas alguém que estava me disse que a melhor maneira de descrever a aparência de Mary era dizer que lembrava muito a pintura de Beatriz Cenci feita por Guido Reni".




Entre aspas: 



"Mesmo entre os homens mais nobres, uma vez que o eu ganha uma existência proeminente, torna-se algo mesquinho e pequeno". (pág. 201)

"É notório que não há religioso mais zeloso do que o convertido; e não há patrão mais rígido e indiferente aos interesses de seus trabalhadores do que aqueles que vieram eles próprios dessa classe". (pág. 203)

"(...) sentir ansiedade e tristeza pelo mesmo motivo faz as pessoas ficarem amigas mais depressa do que qualquer outra coisa (...)" (pág. 400)


sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A paz dura pouco (1960)
Chinua Achebe (1930-2003- NIGÉRIA 
Tradução: Rubens Figueiredo      
São Paulo: Companhia das Letras, 2013, 194 páginas



Corre o ano de 1956. Obi Okonkwo, 25 anos, está de volta à Nigéria, após quatro anos estudando Inglês em Londres, financiado pela União Progressista de Umuofia, "vilarejo de língua ibo na Nigéria Oriental" (p. 13), cidade-natal do protagonista. Obi - de nome completo Obiajulu, "a mente afinal em repouso" (p. 15), criado no anglicanismo - é o primeiro cidadão de sua aldeia, situada a 800 quilômetros de Lagos, a capital, a conseguir um "'cargo europeu' no serviço público" (p. 16), ou seja, a tornar-se um funcionário civil de primeira classe, o que "basta para  alçar um homem das massas para a elite" (p. 109), dando-lhe direito a apartamento funcional, adiantamento para a compra de um carro e salário mensal de 47,10 libras, valor equivalente ao que seus concidadãos levavam até um ano para ganhar. Entusiasmado com as perspectivas futuras e cheio de ideias progressistas, Obi luta para tornar-se uma cidadão exemplar, objetivando contrariar a visão dos colonizadores ingleses, que achavam que os africanos "ao longo de muitos séculos, foram vítimas do pior clima do mundo e de todas as doenças imagináveis", o que os deixou "moral e fisicamente solapados" (p. 12). Instalado no escritório da Comissão de Bolsas de Estudo, Obi tenta sobreviver com o pouco que lhe sobra após pagar a cota da dívida para com a União Progressista de Umuofia (20 libras) e a mandar dinheiro para os pais (10 libras). Pouco a pouco chegam as cobranças pelo seguro do carro, as cotas referentes ao imposto de renda, as novas despesas contraídas para manter as aparências de sujeito bem-sucedido... Para piorar, Obi descobre que sua família interpõe-se de maneira irredutível ao casamento com Clara Okeke, por conta de uma maldição que pesa sobre os Okeke, e aumenta ainda mais as dívidas para pagar seu aborto. Cada vez mais enredado, Obi Okonkwo acaba aceitando subornos, tanto em dinheiro quanto em sexo, inicialmente para resgatar débitos, depois por hábito, até ser afinal pego em flagrante delito... Maravilhoso romance sobre como a realidade dos países periféricos, submetidos à miséria e aos maus políticos, arrastam até os mais bem intencionados... Ou, usando as palavras do próprio protagonista: “A tragédia de verdade nunca se resolve. Prossegue para sempre sem esperança. A tragédia convencional é muito fácil. O herói morre e nós nos sentimos purgados de nossas emoções. Uma tragédia de verdade se passa numa esquina, num local sujo (...). O resto do mundo não tem consciência daquilo. (...) Não existe purgação das emoções para nós, porque não estamos lá" (p. 51-52).

 (Novembro, 2018)

Avaliação: OBRA-PRIMA
















terça-feira, 13 de novembro de 2018

Mar de histórias - 9º volume 
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai (org.)         
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, 391 páginas 



Este volume, intitulado "Tempo de crise", revela 23 contos de 20 autores, incluindo o ótimo "Camunhegue", do brasileiro Valdomiro Silveira (1873-1941), infelizmente engolfado entre os chamados "pré-modernistas", conceito preguiçoso,  que não quer dizer absolutamente nada... Os destaques vão para o sempre excelente autor irlandês James Joyce (1882-1941), aqui representado pelo magnífico "Compensações"; a pequena obra-prima, ao mesmo tempo de humor e terror, "A porta aberta", do inglês Saki (1870-1916); e mais outras três obras-primas: "Num bosque", do japonês Ryonusuke Akutagawa (1892-1927), "Por causa dos dólares", do polonês, que escrevia em inglês , Joseph Conrad (1857-1924), e "A tragédia de um personagem", do italiano Luigi Pirandello (1867-1936). Bons também "O homem de Cabul", do indiano Rabindranath Tagore (1861-1941), "A viagem a Tilsit", do alemão Hermann Sudermann (1857-1928), "O trinchante", do francês Valery Larbaud (1881-1957) e "Um episódio do lago de Genebra", do austríaco Stefan Zweig (1881-1942). Isso mostra que, embora os tempos fossem realmente de crise (o livro aborda o  período compreendido entre 1913 e 1919, ou seja, plena Grande Guerra), ainda havia escritores que tinham o que dizer a respeito do mundo. Não teriam voz, no entanto, os que pereceram nos campos de batalha daquele que talvez tenha sido um dos mais insanos episódios da história da Humanidade - e que eram jovens entre 1913 e 1919...



(Novembro, 2018)


Avaliação: MUITO BOM

domingo, 11 de novembro de 2018

A falência (1901)
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934- BRASIL                     
Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2003, 374 páginas



A ação se passa em 1891, ano “em que o preço do café assumira proporções extraordinárias” (p. 31), logo após a implantação da República, época também das grandes especulações financeiras na Bolsa de Valores, período conhecido como Encilhamento. Francisco Teodoro, imigrante chegado ainda criança de Portugal, “sem bagagem” (p. 34), “quase analfabeto, com a cabeça raspada, a jaqueta russa e os sapatões barulhentos” (p. 41), alcança fortuna, dono de uma das casas “mais graúdas no comércio de café” (p. 29) no Rio de Janeiro. Com “um belo ar de burguês satisfeito” (p. 30), mora com a família numa mansão na praia de Botafogo, “em que as roupas, as comidas e as bebidas atafulhavam os armários e a despensa até a brutalidade” (p. 209). A mulher, Camila, filha de “gente pobre, mas de educação” (p. 45), vive para festas e para o amante, o doutor Gervásio, um médico rico que não precisa exercer a profissão. O filho mais velho, Mário, sabendo do caso extraconjugal da mãe, vinga-se, gastando dinheiro com mulheres e farras, indignado com o comportamento de Camila e com a cegueira do pai, único entre todos a não desconfiar do adultério. Há ainda a filha Ruth, violinista sensível e talentosa, as irmãs gêmeas Lia e Rachel, a sobrinha Nina, filha de um irmão de Camila, e a empregada Noca, espécie de faz-tudo. Pouco a pouco, Francisco Teodoro envolve-se com especulações sobre o preço do café até que, falido, mata-se, envergonhado por não conseguir manter seu sonho de “ser o primeiro negociante, o mais hábil, o mais forte” (p. 33). Assim, empobrecida, a família muda-se para uma pequena casa no subúrbio, que Francisco Teodoro havia doado para o futuro incerto de Nina, longe dos antigos amigos e abandonados até mesmo por Mário, agora casado com a nobre e rica Paquita, “arzinho enfadado de loura anêmica”, (p. 184). Noca, Nina e Ruth começam a trabalhar para compor o orçamento doméstico, enquanto Camila descobre decepcionada que o amante havia lhe mentido todo o tempo, pois, casado, havia deixado a mulher por ela ter cometido adultério... Romance fluido, escrito na terceira pessoa, o que deixa a narradora à vontade para comentar o que vai na consciência dos personagens, é uma crítica acerba a respeito da desigualdade social – “Que direito teriam uns a todas as primícias e regalos da vida, se havia outros que nem por uma nesga viam a felicidade?” (p. 238), pergunta-se Ruth -, do trabalho como instrumento de emancipação do ser humano e do papel da mulher na sociedade. A opressão de Camila se dá tanto pelo marido, João Teodoro – “A mulher nasceu para mãe de família. O lar é o seu altar; deslocada dele não vale nada!” (p. 81);  “não quis casar com mulher sabichona. É nas medíocres que se encontram as esposas” (p. 132), ele pensa –, quanto pelo amante, Gervásio, um sujeito arrogante e superficial, que faz de Camila “obra sua”, pois ele a transforma, mudando-a “ao influxo de seus gostos, da sua convivência e do seu espírito” (p. 75). O romance também denuncia, de forma veemente, a violência doméstica contra as mulheres, sejam ricas como D. Joana, uma das tias de Camila, viúva de um colchoeiro, “de quem sofrera os maus tratos que, na inconsciência das bebedeiras, ele lhe ministrava” (p. 61); ou como a mãe do Capitão Rino, “morta a facada pelo pai, como adúltera” (p. 196); sejam miseráveis como Sancha, a empregada que ironicamente apanha todos os dias de D. Joana, com a conivência indiferente da outra tia, D. Etelvina. A narradora passeia com absoluta competência tanto pelas mansões e armazéns do cais do porto, quanto pelas favelas nascentes (“Era o resto de uma cidade, tomada de assalto por gente expatriada, resignada a tudo: ao pão duro e à sombra de qualquer telha barata. Uma pobreza avarenta aquela, que formigava por toda a encosta de lajedos brutos, entre ratazanas e águas servidas” (p. 101)). Com competência, ela consegue, até mesmo, formular um diagnóstico bastante preciso do que o país iria se tornar: “A pulsação do seu sangue alvoraçado dava-lhe [ a João Teodoro] a percepção fantástica de que o Brasil seria arrastado vertiginosamente pela maldade de uns, a ignorância de outros e a ambição de todos, em voragens abertas pela política amaldiçoada” (p. 312).


(Novembro, 2018)



Avaliação: MUITO BOM

Entre aspas: 



“Qual é a mulher, por mais estúpida, ou mais indiferente, que não adivinhe, que não sinta o adultério do marido no próprio dia em que ele é cometido? Há sempre um vestígio da outra, que se mostra em um gesto,, em um perfume, em uma palavra, em um carinho... Eles traem-se com as compensações que nos trazem...”. (p. 72)



“Os senhores romancistas não perdoam às mulheres; fazem-nas responsáveis por tudo – como se não pagássemos cara a felicidade que fruímos! Nesses livros tenho sempre medo do fim; revolto-me contra os castigos que eles infligem às nossas culpas, e desespero-me por não poder gritar-lhe: hipócritas! Hipócritas”. (p. 71-72)




domingo, 4 de novembro de 2018

A saga de Gösta Berling (1891)
Selma Lagerlöf (1858-1940- SUÉCIA                    
Tradução: Inga e Miguel Gullander     
Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, 405 páginas





Romance anacrônico, que usa de procedimentos pré-românticos para contar, não a saga do protagonista Gösta Berling, "jovem, alto, magro e extraordinariamente belo" (p. 9), mas sim para evocar personagens e paisagens de uma região específica da Suécia, a chamada Värmland, e de uma época específica, "por volta de 1820" (p. 9). E a autora assim procede intercalando algumas aventuras de Gösta Berling, que beiram ao inverossímil, por conta de seu irresistível poder de sedução das mulheres, com episódios que lançam luzes sobre os personagens secundários que orbitam em torno dele. Berling, sacerdote* rejeitado pela Igreja, cujo mal foi ter recebido "amor em demasia": -"Mulheres e homens têm-te amado. Bastava brincares e rires, cantares ou fazeres música, e toda gente te perdoava tudo" (p. 387) -, é uma espécie de super-herói, que aos trinta anos, "cavalheiro dos cavalheiros", é "só por si, (...) melhor orador, cantor, músico, caçador, beberrão e jogador que todos os outros juntos" (p. 35). O livro é uma declaração de amor à terra natal da autora, um lugar onde a natureza, "dominada por forças invisíveis, que odeiam o homem" (p. 103), pede para ser dominada.


* É curioso que os tradutores nomeiem como padres os pastores da igreja protestante...


(Novembro, 2018)


Avaliação: BOM

Entre aspas: 


"(...) a vida é difícil para os potros que não suportam nem as esporas nem o chicote" (pág. 16)

"Acontece, frequentemente, os homens tornarem-se cruéis, atormentando o próximo, porque temem pelas suas próprias almas" (pág. 88)

"Quem compreende, não odeia" (pág. 118)

"O coração inquieto perde sempre. Torna, sempre, ainda pior o mal" (pág. 178)


sábado, 6 de outubro de 2018

Duas narrativas fantásticas (1876 e 1877)
Fiódor Dostoiévski (1821-1881- RÚSSIA                    
Tradução: Vadim Nikitin        
São Paulo: Editora 34, 2015, 123 páginas




Embora seja o Autor a intitular as duas narrativas presentes neste volume de "fantásticas", elas não podem ser assim entendidas. A primeira, "A dócil", de 1876, que o próprio Autor considera "realista ao extremo" (p. 13), é por ele conceituada como "fantástica" pela "forma", um jorro de lembranças e explicações de um marido ao lado do corpo da mulher que acabou de se suicidar. Uma espécie de fluxo de consciência que antecipa alguns procedimentos de vanguarda que estariam em voga décadas depois. A segunda narrativa, "O Sonho de um homem ridículo", de 1877, é a descrição de um sonho, que alinhava elementos oníricos próprios desse estado de espírito, mas também profundamente ancorados no real. "A dócil" é um conto longo, que expõe o desespero de um homem de quarenta e um anos, dono de uma casa de penhores, na busca de compreender, ou melhor ainda, de justificar o suicídio da mulher, uma órfã de 16 anos, com quem vive uma relação de "desigualdade", que o cativava (p. 35). O marido faz tudo para atormentar a mulher, para colocar à prova seu amor, sua fidelidade, sua submissão, até descobrir que o que conseguiu dela, ao invés de afeto, foi apenas um profundo desprezo, que a empurra para o desfecho trágico. Um mergulho nas regiões abissais da alma humana... Já "O Sonho de um homem ridículo", um conto breve, surpreende um homem para quem "tudo tanto faz" (p. 92), que, disposto a se matar, interrompe o ato após perceber que sente pena de uma criança com quem cruza na rua, provando, desta maneira, que nem tudo lhe é verdadeiramente indiferente. Então, volta para casa, dorme e sonha com um mundo utópico, no qual reencena a ideia edênica de alguém que macula uma terra "que antes era feliz e não conhecia o pecado" (p. 117).  Contudo, esse homem, ao acordar, decide que, apesar de tudo, irá prosseguir.





(Outubro, 2018)

Avaliação: BOM

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Noites brancas (1848)
Fiódor Dostoiévski (1821-1881- RÚSSIA                    
Tradução: Nivaldo dos Santos        
São Paulo: Editora 34, 2005, 96 páginas




Narrativa curta, dividida em quatro noites e uma manhã, que coloca em cena um jovem de 26 anos, que se autodenomina Sonhador, e uma adolescente de 17 anos, Nástienka. Este Sonhador mora em São Petersburgo há oito anos, num quarto de pensão de "paredes verdes enegrecidas, o teto coberto de teias de aranha" (p. 13), cultivando suas obsessões - "Se uma cadeira minha não estiver como na véspera, então fico fora de mim" (p. 13) -, imerso na mais profunda solidão, um homem comum, "absolutamente sem qualquer história" (p. 28). Uma noite, sob a luz "incerta e fantástica" (p. 39) da cidade, as chamadas "noites brancas", o Sonhador encontra Nástienka por acaso, debruçada no parapeito do canal, chorando. Ele se comove com a imagem e tenta se aproximar, mas é rechaçado, até que, assediada por um homem mais velho, Nástienka aceita ser conduzida até sua casa. Ao se despedirem, após insistência do Sonhador, ela promete voltar a encontrá-lo na noite seguinte. E, então, o Sonhador, que fala "maravilhosamente bem", "exatamente como se lesse um livro" (p. 32), se apaixona por Nástienka, embora ela lhe confesse sua paixão por outro, um hóspede que havia alugado um quarto na casa de sua avó, e que prometera voltar para se casar com ela, após passar um ano em Moscou, período que finda naquela época. Na quarta noite, depois de ela desistir de esperar a volta do amado, consente em casar-se com o Sonhador. Chegam até mesmo a traçar planos futuros juntos, mas eis que o amado ressurge e ela opta por ficar com ele. Apesar de frustrado, o Sonhador não se desespera, suspirando, ao final, "Meu Deus! Um momento inteiro de júbilo! Não será isso o bastante para uma vida inteira?..." (p. 82). quando, ele, que nunca conseguira estabelecer "quase nenhuma relação" (p. 11), de certa forma responde às suas indagações anteriores: "o que você fez de seus anos? Onde sepultou a melhor época? Você viveu ou não?" (p.44).


(Outubro, 2018)


Avaliação: BOM

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Juncos ao vento (1913)
Grazia Deledda (1871-1936) - ITÁLIA                   
Tradução: Maria Augusta de Mattos       
São Paulo: Carambaia, 2015, 224 páginas





A certa altura, Efix Maronzu, o verdadeiro protagonista do romance, afirma: "Somos como os juncos ao vento. (...) Somos juncos, e o destino é o vento" (p. 204). E a narrativa mostra isso: os personagens agem como títeres, no aguardo da escrita de suas vidas ínfimas. O cenário é Galtellì (no livro, Galte), interior da Sardenha, no final do século XIX, um território dominado pela miséria e pela malária - e é ali que se desenvolve a história das irmãs Pintor, Ruth, Ester e Noemi, membros de uma família aristocrática decadente, isoladas num sobrado em ruínas, envergonhadas da pobreza, mas arrogantes, tão afundadas no passado "que o presente quase não lhes interessava mais" (p. 54). Cabe a Efix, o servo, manter as irmãs com a renda das hortaliças que cultiva no sítio, único pedaço de terra que restou, e que elas "vendiam em casa às escondidas" (p. 89). A enfadonha rotina da aldeia, no entanto, é alterada com a chegada de Giacintino, um sobrinho das irmãs Pintor, filho de Lia, que rebelou-se contra a opressão da família,  e fugiu, com a ajuda de Efix, que, na sequência, acaba assassinando dom Zame, o pai, um crime sem testemunhas. Giacintino trabalhava como funcionário da alfândega, em Civitavecchia, no litoral, e acabou gastando em jogos o dinheiro de um comandante de navio aposentado que o havia deixado sob sua custódia. Ele busca então refúgio na aldeia de sua mãe. Mas ao invés de trazer paz e tranquilidade aos parentes, como imaginava Efix, provoca transtornos. Passa os dias em festas e folguedos; falsifica assinaturas de uma das tias, Ester, para obter empréstimos com Kallina, a agiota; compromete-se com Grixenda, filha da velha Pottói, "moça da pior raça de Galte" (p. 101), segundo as palavas de outra tia, Noemi, que se vê enredada com o sobrinho. Descobertas suas falcatruas, Giacintino foge para Oliena, onde passa a trabalhar num moinho. Kallina executa as notas promissórias, resgatadas por Predu, primo rico das irmãs Pintor, e Ruth, a mais velha, morre, de desgosto. Para acalmar sua consciência, Efix resolve pagar penitência e ganha o mundo como guia de cegos. Meses depois, volta à aldeia e adoece. Antes de morrer, entretanto, vê Giacintino cumprir sua promessa de desposar Grixenda e assiste ao casamento de Predu com Noemi. Após confessar-se com o padre Paskale, sucumbe, em paz. Muito mais que aprofundar os traços psicológicos dos personagens, "juncos ao vento", a Autora deixa o destino agir sobre eles. O final feliz é digno dos mais ortodoxos romances românticos.




(Setembro, 2018)

Avaliação: BOM

terça-feira, 18 de setembro de 2018

O marquês de Roccaverdina (1901)
Luigi Capuana (1839-1915) - ITÁLIA                   
Tradução: Eugênio Vinci de Moraes      
São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2005, 381 páginas



Antonio Schirardi, o marquês de Roccaverdina, vivia isolado em suas terras, na região de Ràbbato, aos pés do monte Etna, na Sicília, "entre os camponeses que o temiam e não lhe queriam bem, porque os tratava pior do que escravos e nunca lhes dirigia uma palavra de apreço" (p. 69). Quando o conhecemos, ele já se livrou de Agrippina Solmo, uma camponesa, tomada por ele ainda menina e tornada amante, "não uma amante qualquer, mas uma verdadeira escrava, boa, submissa... que ainda tinha a grande vantagem de não fazer filhos" (p. 108). Após dez anos de concubinato, para escândalo da sociedade, o marquês a havia casado com um empregado, Rocco Criscione, que deveria manter o casamento na aparência, sem consumá-lo, ganhando, em troca, livre trânsito nas terras do marquês. O problema é que o marquês tinha obsessão por tudo o que lhe pertencia - e por conta dos ciúmes de Agrippina, não ciúmes de amante, mas de proprietário, ele acaba assassinando Rocco, numa tocaia. Um outro empregado seu, Neli Casaccio. é preso, acusado pelo homicídio, e o advogado Guzzardi arrebanha as testemunhas que confirmam os indícios de que Neli alimentava vingança contra Rocco, por este assediar sua mulher. O marquês de Roccaverdina trava então uma luta interior, entre a culpa que o corrói, e a certeza da impunidade, amparada em sua arrogância. Acuado pelas visões do advogado Guzzardi, que, espírita, diz encontrar com a alma de Rocco, e anuncia acreditar na inocência de Neli Casaccio, o marquês confessa o crime ao padre, dom Silvio La Ciura. A partir daí, aumenta ainda mais a "inquietadora sensação de caminhar sobre um terreno nada firme que poderia a qualquer momento afundar-se sob seus pés" p. 180), pois cada frase, cada gesto, cada olhar, parece incriminá-lo. Neste ínterim, para tentar amainar a culpa, ele propõe casamento a Zòsima Mugnos, uma nobre cujo pai perdera toda a fortuna, "por causa dos vícios da gula e do jogo" (p. 110), e organiza uma cooperativa para a produção de vinho e azeite. Agrippina se casa novamente e muda-se para um lugar distante dois dias de viagem; Neli Casaccio morre na cadeia; um pequeno proprietário, Santi Dimauro, obrigado a vender suas terras para o marquês, se enforca perto da sede da cooperativa, e o padre La Ciura morre de exaustão, ao ajudar os pobres durante uma epidemia de tifo. Tudo é derrocada. O casamento com Zòsima não traz felicidade a nenhum dos dois - ela percebia "que havia entrado na vida dele com a mesma importância das mós, dos esmagadores de uva, das prensas e de todos os outros equipamentos que o mantinham ocupado, sem que no coração dele vibrasse algo de mais íntimo, de mais doce" (p. 229). Além disso, Zòsima não consegue livrar-se da sombra de Agrippina sobre a casa onde agora é a senhora... Afinal, também a cooperativa resulta em fracasso: o vinho produzido mostra-se de péssima qualidade e as dívidas contraídas começam a ser cobradas. O marquês, tomado por alucinações, confessa, aos berros, ser o verdadeiro assassino de Rocco, enlouque e é abandonado pela mulher. No final, antes de morrer, recusando-se a comer, e totalmente privado da razão, é assistido por Agrippina, que, embora pouco presente no livro, é a verdadeira protagonista. Ainda há, como pano de fundo, a longa seca que traz a fome, a miséria e o tifo à região, numa Itália recém-unificada, e fascinantes personagens secundários, como o advogado Guzzardi, o primo ateu e blasfemo Pergola, o tio Tindaro, arqueólogo amador, e a baronesa de Lagomorto com seus cachorrinhos... Um grande ficcionista é aquele que consegue provocar empatia mesmo quando constrói personagens execráveis, como é o caso do marquês de Roccaverdina... Um grande romance!


(Setembro, 2018)

Avaliação: MUITO BOM


terça-feira, 11 de setembro de 2018

Três novelas exemplares e um prólogo (1920)
Miguel de Unamuno (1864-1936) - ESPANHA                  
Tradução: Mustafa Yazbek      
São Paulo: Nova Alexandria, 1995, 110 páginas




O título é autoexplicativo, embora o que o Autor chame de novela poderíamos intitular contos longos... Mas, trata-se de uma mera questão de nomenclatura... O melhor do livro está no prólogo, não que eu necessariamente concorde com ele, mas pela sua proposta, uma confusa, mas divertida, discussão a respeito do realismo, do conceito de novela e do significado de exemplar... Não me encanta, entretanto, a literatura de tese, ou seja, a narrativa que defende uma ideia preconcebida - seja ela política, antropológica, sociológica, etc. E é o que faz o Autor. No primeiro conto, "Duas mães", ele coloca em evidência o seguinte raciocínio: o que ocorreria se Don Juan, o famoso mito literário, tivesse, no fim do vida, encontrado uma viúva esperta e estéril, que, empurrando-o para o casamento com outra mulher, essa jovem e fértil, conseguisse, ao mesmo tempo, ficar com toda a sua fortuna e com o filho advindo dessa relação? A outra história, a mais fraca de todas, "O Marquês de Lumbría", discute a podridão da aristocracia espanhola, com traição, vingança, humilhação, superação etc - um verdadeiro enredo descabelado... Por fim, em "Nada menos que um homem inteiro", a sensibilidade do Autor consegue superar as amarras da tese e ele constrói uma belíssima trama, que embora às vezes também beire ao romantismo mais deslavado, o suplanta com a criação de um personagem inesquecível, Alejandro Gómez, um rico proprietário, que "quando muito criança, havia sido levado por seus pais para Cuba, primeiro, e para o México, depois, e que ali se ignorava como havia construído uma enorme fortuna, uma fabulosa fortuna" (p. 72). Gómez sente profundo desprezo por gente de forma geral, pois acredita que tudo o que toca passa a lhe pertencer, incluindo as pessoas. Seu amor-próprio será colocado à prova quando sua mulher, a linda Júlia Yáñez, o trai com o jovem conde de Bordaviella. A maneira como Gómez resolve a questão e como, assim, revela sua verdadeira natureza, é realmente impressionante...




(Setembro, 2018)





Avaliação: BOM

Entre aspas: 

"A preguiça mental, o fato de não saber julgar a não ser conforme precedentes, é o mais característico daqueles que se dedicam a ser críticos". (pág. 7-8)

"(...) aquele que goza uma obra de arte é porque a cria em si mesmo, a recria e ela lhe apraz". (pág. 12)


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Histórias sobrenaturais (1884-1926)
Rudyard Kipling (1865-1936) - INGLATERRA                  
Tradução: José J. Veiga     
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, 493 páginas


Reunião de 33 contos que emulam temas envolvendo fantasmas e espíritos, enfim, eventos não de todo explicáveis pela Razão. Do total, 24 narrativas têm como cenário o território ao norte da Índia,  fronteira com o agora Paquistão. embora os protagonistas sejam todos britânicos. As melhores histórias, curiosamente, contam como pano de fundo os horrores da Primeira Guerra Mundial e estão entre os últimos escritos do Autor: "Varrido e enfeitado", uma terrível alucinação de uma mulher alemã que vê em seu quarto crianças belgas assassinadas por seus compatriotas; "Nossa Senhora das Trincheiras", um caso de trauma de guerra, com aparições e suicídio; e o excelente "O jardineiro", a busca de uma tia pela tumba do sobrinho desaparecido no campo de batalha. No ciclo indiano, destacam-se "O signo da Besta", "A volta de Imray", "No fim do corredor", "A legião perdida" e "A tumba dos ancestrais", e, fora, "Eles", um conto que lembra o romance "A outra volta do parafuso" (1898), de Henry James (1843-1916). Não pense o leitor, contudo, que trata-se, como pode sugerir o título do livro, de histórias nas quais o mais importante é provocar sensações superficiais - nada disso. O Autor consegue, com maestria, impor, em todos os contos, "desespero sobre desespero, angústia sobre angústia, medo sobre medo, cada um com seu estrago próprio" (p. 413), de certa forma advertindo que nem tudo se encaixa dentro da nossa previsível compreensão.


(Setembro, 2018)




Avaliação: MUITO BOM

Curiosidade 


No conto "Eles", o Autor confunde o nome da capital dos Estados Unidos... Ele narra, à pág. 386: "Passado aquele preciso lugarejo que deu nome à capital dos Estados Unidos, encontrei aldeias escondidas onde as únicas coisas vivas etc" - ele estava se referindo a York...

Entre aspas: 

"Homens e mulheres podem às vezes depois de grande esforço passar uma mentira convincente, mas a casa, que é o templo de homens e mulheres, só pode dizer a verdade sobre os que nela moram". (pág. 400)



terça-feira, 4 de setembro de 2018

Cenas de vida siciliana (1874-87)
Giovanni Verga (1840-1922) - ITÁLIA                 
Tradução: Vários     
São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2001, 283 páginas




Esta coletânea reúne 18 contos, incluindo Cavalleria rusticana, publicado originalmente em 1880, que redundou, dez anos depois, na famosíssima ópera homônima, de Pietro Mascagni, uma história violentíssima de traição e honra primitiva. Aliás, um certo primitivismo dá o tom a todas as narrativas, que têm como cenário a Sicília do começo do século XIX, habitada por homens e mulheres semi-selvagens, acossados pela miséria, pela fome, pela malária e pelo cólera. Alguns contos, na verdade, não passam de anedotas - como Guerra dos santos, O mistério, Assim é o Rei -, outros sugerem crônicas - A amante de Gramigna, Fantasia, Os bens, Os coléricos -, e outros ainda funcionam como núcleos de romances frustrados - O padre, Andanças, Pão amargo -, ou trechos de romances não escritos - Liberdade, A loba. Destaque para as trágicas histórias de Nedda, de Jeli, o pastor, e do Ruivo Pêlo-ruim. O Autor claramente não se sente à vontade na narrativa curta, quase todos os contos transbordam em enredo e terminam provocando no leitor aquela sensação de que havia mais a ser revelado. De qualquer forma, é uma boa entrada para o universo do Autor.



(Setembro, 2018)



Avaliação: BOM


Entre aspas: 

"As galinhas, quando não têm nada para bicar no galinheiro, se bicam entre si". (pág. 208)

sábado, 18 de agosto de 2018

Jane Eyre (1847)
Charlote Brontë (1816-1855) - INGLATERRA                 
Tradução: Adriana Lisboa     
Rio de Janeiro: Zahar, 2018, 535 páginas




Jane Eyre tem 30 anos quando resolve escrever sua autobiografia. O que lemos neste livro é o relato de sua trajetória, entre os 10 e os 20 anos, sendo talvez dois terços das mais de 500 páginas dedicados a um único ano passado na propriedade de Thornfield Hall, quando se apaixona pelo patrão, Edward Fairfax de Rochester. Jane conta que, logo após nascer, os pais morrem, ambos de febre tifóide, e ela vai morar com a família do tio materno, Sr. Reed, na propriedade de Gateshead Hall. Mas o tio também morre e ela passa a ser hostilizada pela viúva, Sra. Reed, e pelos primos. Por reagir com veemência à forma injusta com que é tratada, Jane é encaminhada para Lowood, uma instituição de caridade para educação de órfãs, situada a oitenta quilômetros de Gateshead Hall. Em Lowood, com "alimentação frugal, roupas simples, acomodações sem sofisticação, hábitos árduos e ativos" (p. 51), vivem oitenta moças, sob a tirania do administrador, Sr. Blocklehurst. A "natureza insalubre do local, a qualidade e a quantidade de comidas das crianças, a água salobra e fétida usada em seu preparo, as roupas e acomodações miseráveis das alunas" (pág. 107) concorre para um surto de tifo, que dizima as estudantes e chama a atenção para a situação de indigência da escola. Ali, Jane permanece por oito anos, seis como aluna, dois como professora, sem nunca ter saído do lugar e sem nunca ter recebido visitas, tendo como referências apenas a diretora, Srta. Temple, e Helen Burns, uma colega que sucumbe ao tifo. Buscando outros ares, Jane se candidata a uma vaga de educadora e muda-se para a propriedade de Thornfield Hall, um lugar com "aspecto de uma casa saída do passado - um altar à memória" (p. 131). Ali passa um ano como professora de Adèle, uma menina francesa, talvez filha natural do senhor da propriedade, Sr. Rochester: "o estreito crescente do meu destino parecia se alargar; os vazios da existência eram preenchidos. Minha saúde fisica melhorou; ganhei peso e força" (pág. 179), confessa Jane. Jane e Rochester se apaixonam perdidamente e, apesar da diferença social (ele rico, ela pobre) e de idade (quase vinte anos), resolvem se casar. No dia da cerimônia, entretanto, é revelado um impedimento - Rochester havia se casado anteriormente na Jamaica e mantém a mulher, louca, apartada num quarto secreto da mansão. Decepcionada e desiludida, embora ainda atraída por Rochester, Jane foge literalmente com a roupa do corpo. Após dois dias de viagem de diligência, chega a Whitcross e, sem conhecer ninguém, quase morre de fome. É salva à porta de uma casa situada num ermo, propriedade conhecida como Marsh End, acolhida pelos Rivers - St. John, que se  se prepara para ser missionário na Índia, e suas irmãs Diana e Mary. Jane vive um ano como professora de uma escola paroquial, e neste intervalo recebe a notícia de que herdara uma fortuna - 20 mil libras - de um tio paterno, que se mudara para a ilha da Madeira. Descobre então ser prima de St. John e suas irmãs e decide dividir o dinheiro igualmente com eles. St. John a pede em casamento, ela recusa-o por não amá-lo, e busca saber o destino de Rochester. Encontra a mansão de Thornfield Hall em ruínas, é informada de que a mulher de Rochester morreu e que ele ficou cego e teve amputada uma das mãos. Jane o procura em outra propriedade da família, Ferndean, reata a relação, casam-se e têm um filho. Apesar de certo romantismo - a redenção quase milagrosa da pobreza pela fortuna deixada por um tio desconhecido -, o livro não afunda nunca "num estado sentimental patético" (pág. 320), e também, apesar de professar uma fé inabalável na Providência Divina "mantive fiel aos princípios e à lei, e desprezei e esmaguei os insanos impulsos de um momento desmedido. Deus me guiou a fazer uma escolha acertada: agradeço à Sua providência pela orientação" (pág. 419), o que sobressai deste romance é o impressionante libelo feminista*. Jane Eyre, embora frágil física e socialmente, não aceita ser tratada como inferior. O fato de se casar no final com Rochester - que poderia ser compreendido como uma resignação às convenções -, não é possível de assim ser entendido: afinal, o marido, cego e maneta, depende dela em tudo para sobreviver, invertendo assim os papéis destinados tradicionalmente ao homem e à mulher. Com ironia e bom-humor, a narradora antecipa, à pág. 429, por meio da fala da srta. Oliver, que "tinha certeza de que minha história prévia, se conhecida, daria um ótimo romance". E deu mesmo...






* Alguns momentos do discurso feminista:

& "Ninguém sabe quantas rebeliões, para além das rebeliões políticas, fermentam nas massas de vida que as pessoas enterram. Das mulheres se espera que sejam muito calmas, de modo geral. Mas as mulheres sentem como os homens. Necessitam exercício para suas faculdades e espaço para os seus esforços, assim como seus irmãos; sofrem com uma restrição rígida demais, com uma estagnação absoluta demais, exatamente como sofreriam os homens. E é uma estreiteza de visão por parte de seus companheiros mais privilegiados dizer que elas deveriam se confinar a preparar pudim e tricotar meias, a tocar piano e bordar bolsas. É insensato condená-las ou rir delas se buscam fazer mais ou aprender mais do que os costume determinou necessário ao seu sexo." (p. 136-137)


& Quando Rochester pensando no casamento próximo diz a Jane que a cobrirá de jóias e riqueza, ela responde: "Só quero uma mente tranquila (...) e não sobrecarregada por inúmeras obrigações. Lembra-se do que falou sobre Céline Varens? Sobre os diamantes e as caxemiras que lhe deu? Não serei sua Céline Varens inglesa [Céline Varens tinha sido uma amante de Rochester, em Paris]. Continuarei sendo a educadora de Adèle; desse modo terei moradia e alimento, além de trinta libras por ano. Meu guarda-roupa virá desse dinheiro, e o senhor não me dará nada além de... (...) seu afeto". (p. 316)

"Não seria estranho (...) ser acorrentada para o resto da vida a um homem que só me considera um instrumento útil?" (p. 482)


(Agosto, 2018)





Avaliação: MUITO BOM


Entre aspas: 

"Se as pessoas fossem sempre gentis e obedientes com aqueles que são cruéis e injustos, as pessoas más sempre fariam as coisas ao seu modo; nunca teriam medo, e assim nunca haveriam de mudar, só piorar cada vez mais. Quando recebemos um golpe sem razão, devemos revidar com muita força (...), Com tanta força que a pessoa que nos agrediu aprenda a nunca mais fazer isso." (pág. 77)

"A maioria dos seres nascidos em liberdade se submete a qualquer coisa por um salário." (pág. 165)

"O remorso é o veneno da vida." (pág. 167)

"O sentimento sem julgamento é (...) uma bebida insípida, mas o julgamento sem o tempero do sentimento é um alimento demasiado amargo e penoso para a deglutição humana." (pág. 279)

"Preconceitos (...) são mais difíceis de erradicar num coração cujo solo nunca foi revirado ou fertilizado pelos estudos; eles crescem ali, firmes como ervas daninhas em meio a pedras." (pág. 398)