segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A modificação (1957)
Michel Butor (1926-2016) - FRANÇA
Tradução: Oscar Mendes 
Belo Horizonte: Itatiaia, 1958, 260 páginas




León Delmont é casado com Henriette, que conheceu ainda na escola. Eles têm quatro filhos, moram num ótimo apartamento no número 15 da Place du Panthéon, lugar nobre de Paris, mas passam por uma crise no casamento. Delmont dirige a filial francesa da Scabelli, uma fábrica de máquinas de escrever italiana, e, por isso, regularmente vai de trem a Roma. Numa dessas viagens, dois anos antes, ele conheceu Cécile Darcella, secretária de um adido militar na embaixada francesa em Roma,  uma jovem de 30 anos, filha de pai francês e mãe italiana, viúva de um engenheiro da Fiat que morreu num acidente de carro dois meses após o casamento. Cécile, na ocasião, voltava de uma viagem de férias a Paris, e Delmont toma-se de encanto por ela. Mas, ao se despedirem em Roma, ele pensa que não voltará a vê-la. No entanto, um mês depois, eles se reveem na porta de um cinema e iniciam uma relação amorosa. Pouco a pouco, Delmont se convence de que Cécile lhe devolvia a juventude que a vida em família sugava. No dia de seu aniversário de 45 anos, ele decide que vai largar Henriette para ficar com Cécile, um projeto que a amante acalenta há muito. No dia 15 de novembro de 1955, dois dias depois de seu aniversário, ele embarca num trem para Roma para fazer uma surpresa para Cécile: contar que arranjou emprego para ela e que em breve eles estarão morando juntos. A opção pelo desconforto é uma concessão romântica: foi voltando do vagão-restaurante que ele esbarrou em Cécile viajando na terceira classe. Ao longo das quase 24 horas de duração do trajeto, sem nada para fazer (ele compra um livro na estação, mas o usa apenas para marcar seu lugar) , Delmont reflete sobre sua decisão. E, pouco a pouco, do entusiasmo inicial pela perspectiva da nova vida com a amante em Paris, ele vai se certificando exatamente do contrário, já que conclui "(...) não amas verdadeiramente Cécile senão na medida em que é ela para ti a imagem de Roma, sua voz e seu convite, (...) não a amas sem Roma e fora de Roma (...)" (p. 222). A técnica usada pelo Autor é inovadora: o livro é narrado na segunda pessoa do plural em francês, vous, vós, que, de forma hábil e inteligente, foi adaptada para a segunda pessoa do singular, tu, pelo tradutor. De tal maneira, que o leitor é levado a participar da narrativa de dentro, como se fosse ele o sujeito da ação, ele que estivesse passando em revista sua vida com a mulher e com a amante, ele que chegasse à conclusão oposta à do início do relato. No final, o narrador decide "(...) tentar fazer reviver pela leitura esse episódio crucial de tua aventura (...) esse livro futuro e necessário cuja forma tens em tua mão" (p.  260). Simplesmente genial.



(Janeiro, 2018)



Avaliação: OBRA-PRIMA 






segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Fogo morto (1943)
José Lins do Rego (1901-1957) - BRASIL    
Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, 245 páginas





Romance sobre a decadência da aristocracia açucareira do Nordeste, o Autor consegue uma síntese interessante ao retratar, paralelamente, o universo do terreiro, representado pelo mestre José Amaro, protagonista da primeira parte, e o universo da casa-grande, protagonizado pelo coronel Lula de Holanda, que domina a segunda parte. O mestre José Amaro, seleiro de profissão, que vive de favor nas terras do engenho Santa Fé, e o coronel Lula de Holanda, herdeiro das terras da mulher, vivenciam o amargor da impotência - um por ser miserável, outro, por inapetente. Ambos são arrogantes e egocêntricos, ambos penam com filhas solteironas e amalucadas por culpa da soberba deles mesmos, ambos encaminham suas vidas para a derrocada. Aliás, impressionantes os casos de loucura que povoam essa narrativa: a filha do mestre José Amaro e a cunhada do coronel Lula de Holanda, diagnosticadas como tais, mas também o capitão Vitorino Carneiro da Cunha e sua tragicômica mania de grandeza, que o leva a algumas quixotescas vitórias; o coronel Lula de Holanda, que no final da vida perde a razão; e o próprio mestre José Amaro, com uma teimosia que o leva ao suicídio. O Autor, na terceira e última parte, consegue, de maneira brilhante, juntar as pontas, unindo o impensável destino de um poderoso senhor de engenho ao de um pobre seleiro. Os personagens tornam-se carne e osso. Impossível deixar de lembrar do mestre José Amaro trabalhando à beira da estrada que leva ao Santa Fé; impossível deixar de ouvir o barulho do cabriolé carregando a família do coronel Lula de Holanda à igreja no Pilar; impossível não temer pela vida de cavaleiro andante do capitão Vitorino Carneiro da Cunha, que enfrenta as injustiças do mundo com a fé no seu punhal, mas que nem as crianças o respeitam, gritando o apelido de Papa-Rabo por onde passa; impossível não acompanhar as investidas do capitão Antonio Silvino, chefe do cangaço, herói para uns, bandido para outros. O livro traça um interessante quadro dos costumes nos primeiros anos da República Velha - a violência contra os negros escravizados ou libertos, os desmandos dos chefetes políticos, o cangaço como única forma de reação contra a opressão dos senhores de engenho, o machismo, o racismo...




(Janeiro, 2018)




Avaliação: MUITO BOM  



sábado, 13 de janeiro de 2018

O Quinze (1930)
Rachel de Queiroz (1910-2003) - BRASIL    
Rio de Janeiro: José Olympio, 2010, 157 páginas






Romance da seca - o "quinze" refere-se à estiagem ocorrida no ano de 1915 -, a Autora desenvolve a narrativa em dois núcleos independentes, porém convergentes: o do amor impossível entre Conceição, uma professora de Fortaleza, encharcada de ideias feministas e socialistas, por seu primo Vicente, interessado apenas nas coisas de sua fazenda, na região de Quixadá; e o da trágica fuga da miséria e da fome protagonizada pela família de Chico Bento. São impressionantes as cenas em que são descritas a paisagem esturricada do sertão cearense e o processo de deterioração física dos retirantes. Comoventes a morte do menino Josias, o sumiço do mais velho Pedro, a queda na prostituição da cunhada Mocinha, a exploração patrocinada pelos comerciantes e pelos políticos, e, o mais inacreditável, o Campo de Concentração (com esta denominação mesmo) em que os flagelados eram amontoados na periferia de Fortaleza. Embora a Autora não aprofunde muito na psicologia dos personagens - prefere descrever situações que penetrar em seus íntimos -, ela não deixa de conseguir uma dimensão complexa, principalmente no caso de Conceição, que, apesar de culta, bondosa e emancipada, mostra-se bastante contraditória, como quando, irritada com a possibilidade de Vicente estar interessado em outra mulher, acentua seu racismo: "Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com negras?" (p, 66); ou quando demonstra nojo pelo afilhado: "Mas Conceição, que tivera intenção de o tomar ao colo, recuou ante a asquerosa imundície da criança" (p. 95); ou quando se cala diante do comportamento machista do primo: "(...) se eu lhe mandasse, só deixava sair com uma guarda de banda" (p. 80). O que resta a Chico Bento e o que sobrou de sua família - além de Josias e Pedro, deixa Manuel para ser criado pela madrinha Conceição - é descer para São Paulo, em busca de um futuro melhor...



(Janeiro, 2018)



Avaliação: MUITO BOM  













sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O cocheiro da morte (1912)
Selma Lagerlöf (1858-1940) - SUÉCIA   
Tradução: Maria de Fátima Lourenço Godinho   
 Lisboa: Estampa, 1975, 212 páginas




Composto por oito narrativas, a mais longa, que empresta o título ao livro, "O cocheiro da morte", e mais sete contos breves, esta coletânea dá uma boa dimensão das preocupações da Autora. São histórias nascidas das lendas e mitos das terras geladas da Suécia, e que tratam, em substância, do tema mais relevante aos seres humanos: a morte. Denominada de "novelas fantásticas" pela editora, por permanecerem nos limiares da realidade, todas contam com um fundo moral (mas não moralizante), qual seja, a do profundo respeito pela vida, ou, em outras palavras, a consciência de que somos os únicos responsáveis pelo nosso destino. "O cocheiro da morte" parte da lenda de que a pessoa que morre no último minuto do último dia do ano substitui o auxiliar da Morte no trabalho de recolher as almas dos que irão falecendo ao longo do ano subsequente. Ocorre assim com David Holm, um bêbado, violento e debochado, que escarnece da tentativa de ajuda dos religiosos ligados ao Exército da Salvação. A irmã Edite, na hora de sua morte, pede para falar com David Holm, e seus companheiros de fé não compreendem o que ela, uma mulher pura e santa, teria para tratar com aquele mendigo rude e ignorante. Mal sabem que Edite, ao se aproximar dele, apaixonou-se, e pensando em fazer o bem, levando-o de volta para os braços da mulher e dos filhos, havia, na verdade, condenado a família à morte, pois ele, tuberculoso, por vingança e por maldade, tenta inoculá-los a sua doença. David, entretanto, morre, pouco depois de Edite, e é colocado como aprendiz do cocheiro da morte que, descobre, é um velho companheiro de farra. Ao longo daquele dia, que parecerá anos para David, ele assiste horrorizado as consequências das suas perversidades e, para corrigi-las, ganha uma segunda chance, regressando à vida. Uma comovente história de redenção, que, aliás, dá a tônica das outras narrativas. "A Lenda de Santa Lúcia" descreve um milagre patrocinado pela santa que nomeia a conto. "O tocador de violino" é o topos de alguém que é punido por zombar dos espíritos. "Sigrid, a soberba" mostra a quase danação do rei católico da Noruega, Olaf, que ia perdendo-se, encantando pela pagã rainha sueca, Sigrid. "A Saga de Reor" conta a história da união entre as raças dos humanos e dos gigantes. "A Velha Agneta" é uma linda história de uma mulher que vivia sozinha no alto da montanha e que encontra no consolo das almas condenadas ao gelo eterno o seu próprio consolo. "O 'Tomte' de Toreby" é uma magnífica fábula ecológica, e, finalmente, descobrimos que "O caminho entre o céu e a terra", ou seja, entre essa e a outra vida, é conduzido pela música... Um livro primoroso!



 

(Janeiro, 2018)



Avaliação: MUITO BOM  



Entre aspas:

"Em breve virá a manhã do primeiro dia do ano, (...), e, ao acordarem, o primeiro pensamento dos homens será para o novo ano; pensarão em tudo o que esperam e desejam que este ano lhes traga e depois pensarão no futuro. E o que eu queria era poder aconselhá-los a não pedirem nem a felicidade do amor nem o sucesso, nem a riqueza ou a longa vida, nem sequer a saúde. Não, que se limitem a juntar as mãos e a concentrar as ideias num único pedido: 'Senhor, fazei com que a minha alma alcance a maturidade antes de ser ceifada'. (pág. 102)









quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Os noivos  (1827-1840)
Alessandro Manzoni (1785-1873) - ITÁLIA   
Tradução: Francisco Degani  
 São Paulo: Nova Alexandria, 2012, 646 páginas





Estamos no começo do século XVII. mais especificamente em 1628. Lorenzo Tramaglino (Renzo) e Lucia Mondella são dois jovens moradores do lugarejo de Lecco, às margens do lago Como, na Lombardia, um ducado então pertencente aos domínios da Espanha. No dia do casamento, o pároco, dom Abbondio, recebe a visita de bravos, delinquentes a serviço de dom Rodrigo, o tirano local, que avisam que o matrimônio não pode se realizar, porque o chefe tem interesse na moça. Covarde e hipócrita, temendo pela vida, dom Abbondio de imediato comunica-os do impedimento. Renzo, um pequeno agricultor, deseja vingança, mas entende que nada pode contra o poderoso adversário, que, sem que saibam, pretende raptar Lucia. Perseguidos, eles tentam enganar o pároco, mas, saindo tudo errado, buscam a interferência de um bom capuchinho, padre Cristoforo, e fogem - Lucia e a mãe vão para um convento em Monza, e Renzo para Milão. No entanto, em Milão, o rapaz se envolve numa rebelião de rua contra a carestia e é identificado como um dos líderes populares. Então, refugia-se em Bergamo, que à época fazia parte da República de Veneza, longe portanto do alcance da justiça lombarda. Em Bergamo, Renzo fica por 20 meses, trabalhando com um primo numa tecelagem de seda. Neste ínterim, Lucia, traída pela superiora do convento, é entregue aos bravos do Inominado, um sujeito cruel e sanguinário, aliado de dom Rodrigo. Num momento de pânico, Lucia promete manter-se virgem, caso sobreviva àquela provação. No entanto, ao conhecê-la no castelo inexpugnável, o Inominado é tocado pela pureza e pela fé de Lucia, e renuncia à vida de crimes, convertendo-se em um homem pio e seguidor dos mandamentos. E aqui há um importante interregno, que revela o ponto alto das capacidades do Autor, o seu fantástico poder de descrição. A partir da página 396 (capítulo XXVIII) até a página 534 (capítulo XXXVII), mesclando história e ficção, consegue descrever, com impressionante habilidade de evocação, o cenário de caos que se abate sobre Milão, primeiro com as revoltas por causa da fome provocada por más colheitas e especulação, depois pelo medo e pela destruição causada pelos invasores alemães (na verdade, austríacos) e na sequência pela peste que se abate sobre toda a região. São páginas que valem o livro inteiro. Renzo sobrevive à peste e sai à procura de Lucia, que encontra num lazareto, também sobrevivente. Renzo promove o encontro de Lucia  com o padre Cristoforo, que também está no lazareto, e ele a libera do voto de castidade. Renzo e Lucia se casam, vão viver em Bergamo, onde, com o dinheiro deixado como dote pelo Inominado, ele compra em sociedade com o primo, uma tecelagem de seda. A peste varreu o mundo, a vida renasce. Interessante que há várias inversões entre bem e mal ao longo do livro. Cito duas: quando Lucia busca refúgio no convento em Monza (o bem) é traída pela superiora (o mal); quando chega ao castelo do Inominado (o mal) é por ele libertada (o bem). A narrativa, embora alicerçada em pressupostos românticos, contém alguns expedientes modernos - como a criação de uma falso manuscrito anônimo anterior, no qual o narrador se baseia para escrever sua versão -, a mistura de ficção e história - o autor faz inúmeras citações em notas de rodapé -, e a forma como dialoga todo o tempo com o leitor (por exemplo, à página 470: "Talvez vocês quisessem um Bortolo mais ideal, não sei o que dizer, fabriquem-no. Esse era assim."), que lembra o nosso Machado de Assis (1839-1908)


(Janeiro, 2018)




Avaliação: MUITO BOM