sábado, 31 de março de 2018

O caminho da cidade (1942)
Natalia Ginzburg (1916-1991) - ITÁLIA        
Tradução: Anna Albom Caruso 
Lisboa: Cotovia, 1991, 86 páginas






Uma história simples, mas muito bem contada. Delia é um dos quatro filhos de um família pobre, que mora numa aldeia a uma hora de caminhada da cidade mais próxima. Na casa vive ainda um primo, Nini. O objetivo de todos eles é fazer como a irmã mais velha, Azalea: sair daquele lugar sem perspectiva. Azalea é casada, tem dois filhos e leva uma vida burguesa, com criada, roupas caras e amante. Delia sonha em ser como ela. Acaba engravidando de Giulio, filho de gente abastada da aldeia, que, após ameaças de escândalo, feitas pelo pai e pela mãe dela, aceita o casamento. Mas Delia não ama Giulio - ela se interessa mesmo pelo primo Nini, que, para se tornar independente, arruma emprego numa fábrica e amasia-se com a viúva Antonietta. No entanto, Delia se casa com Giulio, estabelece-se numa confortável casa na cidade, com criados e dinheiro suficiente para comprar os vestidos que escolher - e Nini, depois de largar a viúva (que acaba se aproximando do irmão de Delia, Giovanni), passa a embebedar-se cada vez com mais afinco, até pegar uma pneumonia e morrer. O romance discute, com rara sensibilidade, o difícil lugar da mulher na sociedade - para quem a segurança de um casamento parece ser o único destino - e também as mudanças que estavam se efetuando no entre-guerras. Delia é, ao mesmo tempo, agente desta transformação - com seu comportamento pouco ortodoxo - e paciente do peso da tradição - pois, ao fim, mostra-se conformada com seu destino.


(Março, 2018)


Avaliação: BOM 

sexta-feira, 30 de março de 2018

O amanuense  Belmiro (1937)
Cyro dos Anjos (1906-1994) - BRASIL       
 Belo Horizonte: Garnier, 2001, 234 páginas


Belmiro, 38 anos, funcionário burocrático de um organismo estatal sem importância, a Seção de Fomento Animal - "onde os homens esperam pachorrentamente a aposentadoria e a morte" (p. 207)  -, resolve, no natal de 1934, começar um diário, que se, a princípio, pretendia "apenas (...) reviver o pequeno mundo" do passado, "perseguindo imagens de um tempo que se foi" (p. 32), pouco a pouco vai compondo um "livro sentimental, de memória", onde a "história do presente (...) expulsou, definitivamente (...) a do passado" (p. 95). O diário de Belmiro atravessa 1935 - agitado em termos políticos, já que é o ano da chamada Intentona Comunista, que daria ensejo ao golpe que implantaria a ditadura de Getúlio Vargas em 1937 - e avança até o carnaval de 1936. O cenário é Belo Horizonte, a acanhada capital de Minas Gerais inaugurada há não muito tempo, que ainda mistura ares de modernidade (foi uma das primeiras cidades planejadas do país) com seus cafés, choperias, sorveterias, e traços da vida bucólica do interior. Belmiro transita nesse mundo: em casa, vive com duas irmãs, mais velhas, "criadas como bichos-do-mato" (p. 222) na fazenda dos Borba, em Vila Caraíbas, na qual vige o peso dos antepassados; na Seção do Fomento, assume um trabalho mal pago e inútil, mas que lhe dá a falsa sensação de estabilidade. Entre a casa e o emprego, os amigos do chope - o "homem sem história" Florêncio, o arrogante erudito Silviano, o subversivo Redelvim, o jovem Glicério, a desejada e inconquistada Jandira - e os amigos da rua, Giovanni, Prudêncio, Carolino. Os dias passam e Belmiro, esse "fruto chocho do ramo vigoroso dos Borba" (p. 27),  registra-os em capítulos curtos, apondo observações com tintas filosóficas. Desencantado, o amanuense percebe o vazio de sua vida, onde quase nada acontece: uma paixão platônica e fugaz, a prisão e a soltura de Redelvim, diálogos com Silviano a respeito de um livro que este diz que está escrevendo, uma viagem ao Rio de Janeiro, a internação da irmã Francisquinha num asilo de alienados e depois sua morte, a saída de Glicério da Seção de Fomento... Ninharias de uma existência apagada... Embora o romance tenha clara filiação a Machado de Assis - admiração que o narrador não esconde (V. p. 200) -, o Autor consegue impor sua personalidade, guindando o livro a um raro momento de altitude da literatura brasileira. Há uma coisa que me incomoda profundamente: a mimetização da fala "errada" das irmãs do narrador, únicas a ganharem esse tipo de registro ao longo de todas as páginas, o que chega a ser até mesmo incoerente com a descrição do pai, cuja "formação intelectual era de bom fundo humanístico", sendo "sólido no vernáculo e seguro em matemáticas e história" (p. 119), e mesmo da mãe, do tronco dos Maias, que "eram finos" (p. 120). 



(Março, 2018)

Entre aspas:

"As coisas não estão no espaço (...); as coisas estão no tempo". (pág. 97)



Avaliação: MUITO BOM 


domingo, 25 de março de 2018

Uma jornada (1937)
Luigi Pirandello (1867-1936) - ITÁLIA       
Tradução: Maurício Santana Dias      
 São Paulo: Nova Alexandria, 2006, 119 páginas







Esta coletânea, póstuma, reúne quinze contos, e é o último volume da série intitulada Novelas para um ano, com as quais o Autor pretendia oferecer ao leitor um total de 365 contos, ou seja, um para cada dia do ano - tarefa que, infelizmente, não chegou a concluir. Este livro é bastante desigual, talvez até mesmo por não ter sido organizado pelo Autor, e sim pelo editor. No entanto, aqui encontramos dois ou três textos bastante representativos do humorismo desencantado do Autor, como o excelente "A senhora Frola e o senhor Ponzo, seu genro", ou o terrível "Uma jornada" - o primeiro discutindo a questão dos limites do chamado comportamento mentalmente são, o segundo expondo a passagem de toda uma vida como um sonho que ocorre em alguns minutos. O fascinante nas narrativas do Autor é a  atmosfera de absurdo que se instala no cotidiano, não de um absurdo conseguido graças a algum elemento extraordinário, mas justamente o contrário, o absurdo das pequenas coisas comuns, como em  "A vitórias das formigas", "O bom coração" e "A tartaruga". Aliás, quando o Autor se deixa levar pelo maneirismo fácil, como em "Efeitos de um sonho interrompido" ou "A visita" - ambos tratam do mesmo tema, o encontro com pessoas mortas -, já não consegue o mesmo efeito. Destaco ainda "Alguém está rindo", um conto muito atual, que discute a intolerância do autoritarismo, que não permite, de forma alguma, a dissidência - no caso, o pai e um casal de filhos começam a rir durante uma cerimônia e são escorraçados da cidade por sua "ousadia".



(Março, 2018)


Avaliação: BOM  



quarta-feira, 21 de março de 2018

Kyra Kyralina (1924)
Panaït Istrati (1884-1935) - ROMÊNIA       
Tradução: Erika Nogueira      
 São Paulo: Carambaia, 2018, 181 páginas




Escrito em francês, esse romance certamente poderia pertencer ao ciclo de histórias de As mil e uma noites (compiladas no século IX). Embora não lance mão de gênios e tapetes voadores, o Autor constrói uma narrativa mágica, onde o tempo é fluido e o espaço alargado, repleto de ouro, joias, beis (que substituem os vizires), raptos, reviravoltas sem fim. O leitor tem que suspender a descrença para aceitar as aventuras em que se mete Stavro (ex-Dragomir), um quase apátrida, filho de um fabricante de carroças e de uma mãe financiadora dos irmãos contrabandistas. Sentindo-se romeno, apesar da vida atribulada e sem pouso, Stavro conta sua história para Adrien, filho de sua prima em segundo grau, em três etapas. A primeira, "Stavro", quando se reencontram em Braila, um porto romeno no rio Danúbio; a segunda, "Kyra Kyralina", quando juntos empreendem uma viagem a X.; e a terceira, "Dragomir", quatro anos depois, num café-restaurante no Cairo (Egito). O livro, que na verdade deveria se intitular Stavros, já que é ele o protagonista, refaz a acidentada (e inacreditável) biografia do vendedor de uma bebida quente feita com uma farinha chamada salep. Criado num espaço quase mágico, onde vive com a mãe e a irmã, Kyra, numa vida de luxo e luxúria, um dia eles fogem da violência do pai e do irmão mais velho. Enganados, Stavro e a irmã tornam-se escravos sexuais. Stavro consegue fugir mais uma vez e atravessa as terras pertencentes ao Império Otomano. Até que, um dia, cansado, é adotado por um grego, Barba Yani, que o ensina a sobreviver como feirante.



(Março, 2018)






Avaliação: BOM  

sexta-feira, 16 de março de 2018

A porta (1987)
Magda Szabó (1917-2007) - HUNGRIA      
Tradução: Ernesto Rodrigues     
 Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, 234 páginas




Normalmente tenho profundo desinteresse por livros nos quais o narrador é um... escritor...  Mas, este romance, embora semi-autobiográfico, já que a narradora é uma importante escritora húngara chamada Magda, tem como protagonista a figura emblemática, complexa e profundamente humana de Emerence Szeredás. Emerence é porteira de um prédio em Budapeste, para onde fora aos 13 anos de idade, ao mesmo tempo em que se encarrega de serviços gerais nas casas dos moradores da rua. Magda e seu marido, também escritor, acabam necessitando de alguém para cuidar dos afazeres domésticos e contratam os serviços de Emerence. Em princípio, embora competente, honesta e diligente, o casal a enxerga apenas como um mal necessário à organização do lar, já que prezam, acima de tudo, a discrição e o silêncio. Mas, com o passar do tempo, a relação patrão-empregado se inverte e Emerence se adona de tudo: do cachorro ao cotidiano do casal, aproximando-se particularmente de Magda, com quem mantém uma relação tensa, misto de amor e desprezo. Afinal, quem é essa mulher ácida, incapaz de manifestações de afeto, sarcástica, impiedosa e de passado nebuloso? Aqui, a Autora desenvolve uma técnica formidável: vamos conhecendo a biografia de Emerence ao mesmo tempo que a narradora. Pouco a pouco, recompomos sua vida trágica, feita de perdas em cima de perdas - do pai, do padrasto, da mãe que se enforca ao ver os irmãos gêmeos mortos, atingidos por um raio, do noivo trucidado durante uma revolução, do amante que foge, dos patrões judeus perseguidos pelos nazistas, da menina que ela esconde para não ter o mesmo fim e que, ao crescer, se vai para o exterior. E, isso tudo, tendo como pano de fundo a história húngara, e européia, do século XX, desde a primeira guerra mundial até a distensão da década de 1970 - não explicitamente, mas de forma sutil, já que Emerence detesta a política e os políticos. A história coletiva determinando a história pessoal de Emerence, que formula, então, uma filosofia de vida, que busca seguir à risca: tenta seguir à risca: "não ame ninguém perdidamente, porque isso apenas o poderá levar à sua perda. Se não é logo, há-de ser mais tarde. O melhor é nunca amar ninguém, porque, assim, ninguém será feito em pedaços" (p. 120). É exatamente o que ocorre no final - como antecipa a narradora, à página 9: "eu matei Emerence. E pouco muda que eu não quisesse destruí-la, mas salvá-la". Romance forte, triste, feito de silêncios, de solidões, de desacertos, de culpas, remorsos e ressentimentos.

(Março, 2018)



Curiosidade: 
O capítulo intitulado A herança, (pág. 220-28), no qual a narradora se depara com vários móveis antigos, sua herança, segundo o  desejo de Emerence, guardados num quarto fechado há década, e que se deteriora quando exposto ao tempo, evoca de maneira idêntica aquela cena belíssima, comovente e inacreditável, de Roma (1972), do cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993), quando, durante a construção do metrô, os especialistas descobrem uma casa romana, cujos afrescos milenares desaparecem rapidamente, no momento em que o oxigênio de fora toma o local...





Avaliação: MUITO BOM  



Entre aspas: 


"(...) o afeto é um compromisso, uma paixão repleta de riscos e de perigos". (pág. 69)